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Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.
Igreja de Santa Maria - Covilhã
Início da Serra - Covilhã
Castelo Branco, Fundão e Covilhã. São estas as trigémeas da baixa Beira que se alinham até à encosta sul da Serra da Estrela. Da primeira para a segunda o caminho faz-se conforme a ondulação dos montes. Da segunda para a terceira os relevos dão lugar às rotundas. Do Fundão à Covilhã contei umas boas quinze ou dezasseis, o que resulta na improvável média de nos aparecer quase uma por quilómetro. Depois de tanto contorno e de tanto pisca, ficamos-lhe na base. É que a Covilhã faz-se em elevação. As partes em que ela se divide são andares. De uma para a outra vamos em estrada que mais parece elevador. E lá no sótão está a zona velha, a das igrejas e dos municípios a expelir o seu poder no centro das praças centrais. Convém dizer: a Covilhã, não sendo distrito, tem hoje mais pose disso do que Castelo Branco. É efervescente. À noite, mesmo quando o tempo não ajuda, saltam os estudantes para os bares do bairro antigo. Vêem-se manadas deles, e ainda bem. O interior vive do passado mas precisa do gás da gente nova. Há o motor de tudo isto, que é a universidade, a electrizar ruas cinzentas, em que a cor das paredes é, às vezes, indistinta da bruma que a inunda.
Quando a abandonei, voltei a subir andares. Agora é a Estrela. Piso zero.
Dinis e a Torre, nos dois mil metros - Serra da Estrela
Bruma a apanhar o monte - Serra da Estrela
Até ao pico. Até à Torre. Até ao topo desse telhado esférico que dá os palmos que faltam à serra para ir aos dois mil metros. Aos dois quilómetros, só em altitude. A Estrela é tenebrosa. Na minha pequenez, meteu-me medo, estar ali, caído no colo de um monstro rochoso, feito Adamastor saído da terra em bloco de sólido granito. A cada centímetro que subia os dedos gelavam mais. Ia-lhes mandando bafo quente, boca fora. Mais uns centímetros acima e isso já não chegava. Comecei a pôr os dedos na boca, um a um, para os ir aquecendo. Vinham as placas em intervalos de tempo de vinte minutos: altitude 1200, altitude 1400, altitude 1600. A trezentos do fim pus a hipótese de não subir mais. O nevoeiro era cerrado e levava-me a perguntar se conseguiria sequer tirar uma foto que tivesse o mínimo valor visual. Foi a matemática que me fez seguir caminho - voltar para trás seria certamente pior em distância, e mais valia arriscar o frio. Já nos 1800 metros, deixei de tocar no algodão das nuvens que me envolviam. Passei acima delas, sentado no céu, um Deus do mundo a vê-las inferiores a mim, como espumas de onda batida na barra da costa, levadas com um vento que deixou de me picar. Aos 1930 há placa para a esquerda: é ela, a Torre, o fim. Podemos continuar e não lhe dar crédito. Eu virei. E esfriei. E gelei. E cheguei.
O Dinis, que se saiba e até me mostrarem o contrário, foi o primeiro GoCar a ir tão alto. Em altitude, sim, claro, mas falo de ambição.
Um abraço aos que disseram que o carro não subia sequer a Rua das Pretas em Lisboa. Isto podia ser um chapada de luva branca mas é antes um sopapo de soqueira preta. Encontramo-nos aí por baixo, e falaremos então de outro desafio que me queiram dar.
Rua de Viriato - Loriga
O vale - Loriga
O caminho desce pelo lado norte até, entretanto, se poder virar para oeste, em direcção a Loriga. Se antes a preocupação foi o défice de velocidade, agora é o excesso, com o declive das descidas a embalar carros que dependem do motor e não do pedal para travarem em condições. Descer a Estrela depois de a subir é uma longa expiração depois de minutos a inspirar. Parece fácil, o que torna a obra difícil. Voltamos à densidade branca da neblina. Parece um manto de caxemira a cair à nossa frente. Muito de vez em quando vemos uma nesga de luz. Não é uma nesga de sol. É uma nesga de luz, uma claridade amarelada que nos lembra que ele deve andar mais ou menos por ali, mas que não se quer moer mais que isso.
A meio caminho, situada num outeiro, se a bruma nos der uma folga, avista-se Loriga. Vê-se de longe. Parece bonita dali. Atravessam-se ribeiras e quedas de água e fica ainda melhor à chegada. A parte nova é gira. A velha, com o bairro de São Ginês a dar o mote, é obrigatória. Mas magnífica é quando ela vem mais abaixo, ao poço do vale, onde encontramos pastores a gritar palavras de ordem ao gado que encaminham por trilhos de pedra e musgo, uma roda de mosaicos de cores montanhosas, pontes mal dotadas a disporem-se como travessas de correntes fortes e água mais transparente que o ar. Se nos calarmos ouvimos o eco de aboios, ovelhas a chocalhar o passo apressado que tomam, e o namoro das ribeiras com as rochas. Mais nada. O silêncio devia ser isto e não aquela cena inofensiva que é. Daqui vale a pena levantar o pescoço e olhar com tempo. Estamos nos Alpes Suíços. Mas mais baratos. E sem suíços. Só coisas boas.
Vista para Loriga, ao fundo - Serra da Estrela
Socalcos - Loriga
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