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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Domingo, 04.11.12

Do Fundão à Covilhã e da Covilhã a Loriga

Igreja de Santa Maria - Covilhã

Início da Serra - Covilhã

 

Castelo Branco, Fundão e Covilhã. São estas as trigémeas da baixa Beira que se alinham até à encosta sul da Serra da Estrela. Da primeira para a segunda o caminho faz-se conforme a ondulação dos montes. Da segunda para a terceira os relevos dão lugar às rotundas. Do Fundão à Covilhã contei umas boas quinze ou dezasseis, o que resulta na improvável média de nos aparecer quase uma por quilómetro. Depois de tanto contorno e de tanto pisca, ficamos-lhe na base. É que a Covilhã faz-se em elevação. As partes em que ela se divide são andares. De uma para a outra vamos em estrada que mais parece elevador. E lá no sótão está a zona velha, a das igrejas e dos municípios a expelir o seu poder no centro das praças centrais. Convém dizer: a Covilhã, não sendo distrito, tem hoje mais pose disso do que Castelo Branco. É efervescente. À noite, mesmo quando o tempo não ajuda, saltam os estudantes para os bares do bairro antigo. Vêem-se manadas deles, e ainda bem. O interior vive do passado mas precisa do gás da gente nova. Há o motor de tudo isto, que é a universidade, a electrizar ruas cinzentas, em que a cor das paredes é, às vezes, indistinta da bruma que a inunda.

Quando a abandonei, voltei a subir andares. Agora é a Estrela. Piso zero.

 

Dinis e a Torre, nos dois mil metros - Serra da Estrela

Bruma a apanhar o monte - Serra da Estrela 

 

Nevoeiro antes da subida - Serra da Estrela

 

Até ao pico. Até à Torre. Até ao topo desse telhado esférico que dá os palmos que faltam à serra para ir aos dois mil metros. Aos dois quilómetros, só em altitude. A Estrela é tenebrosa. Na minha pequenez, meteu-me medo, estar ali, caído no colo de um monstro rochoso, feito Adamastor saído da terra em bloco de sólido granito. A cada centímetro que subia os dedos gelavam mais. Ia-lhes mandando bafo quente, boca fora. Mais uns centímetros acima e isso já não chegava. Comecei a pôr os dedos na boca, um a um, para os ir aquecendo. Vinham as placas em intervalos de tempo de vinte minutos: altitude 1200, altitude 1400, altitude 1600. A trezentos do fim pus a hipótese de não subir mais. O nevoeiro era cerrado e levava-me a perguntar se conseguiria sequer tirar uma foto que tivesse o mínimo valor visual. Foi a matemática que me fez seguir caminho - voltar para trás seria certamente pior em distância, e mais valia arriscar o frio. Já nos 1800 metros, deixei de tocar no algodão das nuvens que me envolviam. Passei acima delas, sentado no céu, um Deus do mundo a vê-las inferiores a mim, como espumas de onda batida na barra da costa, levadas com um vento que deixou de me picar. Aos 1930 há placa para a esquerda: é ela, a Torre, o fim. Podemos continuar e não lhe dar crédito. Eu virei. E esfriei. E gelei. E cheguei. 

O Dinis, que se saiba e até me mostrarem o contrário, foi o primeiro GoCar a ir tão alto. Em altitude, sim, claro, mas falo de ambição. 

Um abraço aos que disseram que o carro não subia sequer a Rua das Pretas em Lisboa. Isto podia ser um chapada de luva branca mas é antes um sopapo de soqueira preta. Encontramo-nos aí por baixo, e falaremos então de outro desafio que me queiram dar.

 

Rua de Viriato - Loriga


O vale - Loriga

 

Pastor e gado nas transumâncias da Estrela - Loriga

 

O caminho desce pelo lado norte até, entretanto, se poder virar para oeste, em direcção a Loriga. Se antes a preocupação foi o défice de velocidade, agora é o excesso, com o declive das descidas a embalar carros que dependem do motor e não do pedal para travarem em condições. Descer a Estrela depois de a subir é uma longa expiração depois de minutos a inspirar. Parece fácil, o que torna a obra difícil. Voltamos à densidade branca da neblina. Parece um manto de caxemira a cair à nossa frente. Muito de vez em quando vemos uma nesga de luz. Não é uma nesga de sol. É uma nesga de luz, uma claridade amarelada que nos lembra que ele deve andar mais ou menos por ali, mas que não se quer moer mais que isso.

A meio caminho, situada num outeiro, se a bruma nos der uma folga, avista-se Loriga. Vê-se de longe. Parece bonita dali. Atravessam-se ribeiras e quedas de água e fica ainda melhor à chegada. A parte nova é gira. A velha, com o bairro de São Ginês a dar o mote, é obrigatória. Mas magnífica é quando ela vem mais abaixo, ao poço do vale, onde encontramos pastores a gritar palavras de ordem ao gado que encaminham por trilhos de pedra e musgo, uma roda de mosaicos de cores montanhosas, pontes mal dotadas a disporem-se como travessas de correntes fortes e água mais transparente que o ar. Se nos calarmos ouvimos o eco de aboios, ovelhas a chocalhar o passo apressado que tomam, e o namoro das ribeiras com as rochas. Mais nada. O silêncio devia ser isto e não aquela cena inofensiva que é. Daqui vale a pena levantar o pescoço e olhar com tempo. Estamos nos Alpes Suíços. Mas mais baratos. E sem suíços. Só coisas boas.

 

Vista para Loriga, ao fundo - Serra da Estrela

Socalcos - Loriga

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por Ricardo Braz Frade às 21:00


7 comentários

De mago a 05.11.2012 às 23:16

"Encontramo-nos aí por baixo, e falaremos então de outro desafio que me queiram dar."

Vai. Buscar.

Mas aposto que nao estava assim tanto frio quanto isso na Rua do Viriato, tens de te fazer mais homenzinho e largar o casaco pa'.

Abraco.

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