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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Domingo, 28.10.12

De Nisa a Vila Velha de Ródão

Penhasco - Ribeira de Nisa

Quase Beira - Ponte sobre o Tejo

 

Apanhei duas despedidas de solteiro na noite de Nisa. A dele e a dela. Encontraram-se, as duas facções, no mesmo bar. Com dois ou três espaços à escolha na vila, e tendo ambos combinado a despedida para o mesmíssimo dia, notícia seria não darem com a cara uns dos outros. Dançaram, os nubentes, em cima do balcão, ela com um bouquet num formato um bocadinho mais sexual, ele com um fato que me pareceu ser de uma vaca e um boné que tinha um copo de plástico adjacente, com um tubo que de lá saía e terminava na boca, e para o qual os amigos iam despejando um líquido avermelhado, provavelmente sangria, para o rapaz beber. As amigas da noiva iam sem registo de festa. Os do noivo tinham traje, uma t-shirt branca que dizia game over, curiosamente uma que também eu tenho no meu armário, noutra cor. Esses e essas ficavam em baixo, a aplaudir os de cima e a cantarem músicas acompanhadas em órgão barato: aquela brasileira que começa com nossa, nossa e que fala de uma mulher que metaforicamente mata o vocalista, outra, também brasileira e que não me recordo do nome, mas que tem uns ritmos de forró e soa a uma versão ainda mais enjoativa da lambada, e depois umas portuguesadas dos Xutos, e tal, que calham sempre bem porque ninguém tem a lata de dizer que não aprecia Xutos. Este era o sítio com gente mais velha. O outro, mais junto ao jardim principal, tinha uma média de idades que dava para oitenta por cento do pessoal me tratar por paizinho. 

 

Medronheiro - Vila Velha de Ródão

Trabalho no Tejo - Vila Velha de Ródão

 

Vim cedo e cheguei cedo a Vila Velha de Ródão. É um caminho que tem mais de natureza do que de civilização. Faz-se entre serras, com curvas a intervalar penhascos que ameaçam derribar pinheiros por ali abaixo, até chegarmos, primeiro, à ponte sobre a Ribeira de Nisa, e segundo, à ponte sobre o Tejo, metálica, uns bons cem metros acima do nível da água. 

Se olharem para a esquerda, sentido Oeste, vêem uma das mais belas manifestações naturais a fincarem pés neste país: as Portas do Ródão. São dois cabos que terminam em cada uma das margens do rio, um vindo de norte, outro de sul. Vendo de perfil, formam um copo triangular, com as águas a taparem-lhe o fundo. Se os espreitarmos por cima, parecem dois longos dedos esticados até ao máximo mas que a vontade do rio seguir caminho não permite que se toquem. Foi a força incessante de um Tejo que tanto quis chegar a Belver, e a Santarém, e a Lisboa, que chocou com as rochas até lhes abrir ferida. Ela vê-se, bem exposta, da ponte. Dá a geologia razão ao ditado da pedra dura que a água fura. Não é de espantar, portanto, que esta estátua natural tenha sido divinizada, em lendas e mitos, mas já lá vamos.

À direita, depois de atravessarmos o rio, fica Vila Velha de Ródão, simples, quase fantasma ao Domingo. Da vila pouco vou falar. Não é de encantar. A vista desafogada que tem para o vale mostra-nos fábricas de indústria papeleira como se fossem manchetes de jornal. Nas suas costas há serranias de pinheiros a esconderem medronheiros e rosmaninhos que têm muito mais para dizer, se houver o esforço de andar por trilhos pedestres, alguns de exigente acesso.

Foi por lá que vi o suor recompensado por uma das mais desarmantes vistas que tive, depois de trepar pedra até quase desistir. E foi igualmente por lá que conheci uma das mais fascinantes lendas que me passaram na memória, junto ao castelo do rei Vamba. Terei de voltar atrás, às Portas do Ródão, novamente.

 

Vista para as Portas do Ródão - Vila Velha de Ródão

Trilhos pedestres - Vila Velha de Ródão

Lá do cimo - Vila Velha de Ródão

 

Há diversas versões, umas alentejanas, outras beirãs, mas vou-me resumir àquela que está descrita junto à ermida.

Conta-se que, por alturas do avanço sarraceno, o Tejo separava o rei Vamba, visigodo, na margem direita, de um rei mouro, na margem esquerda. Vamba, entretido com a guerra e outros passatempos, deixou a sua mulher a governar as suas terras. A rainha cristã apaixonou-se pelo mouro, e diz-se que namoravam um com o outro sentados em grandes cadeiras de pedra, cada um na sua margem, num e noutro lado das Portas do Ródão, como se de guardiões do rio se tratassem. O rei mouro, perdido de amor, planeou o rapto consentido da rainha, por um túnel que passaria abaixo do Tejo e desembocasse no outro lado. As contas falharam e o túnel não terminou no destino certo. Ainda assim, a rainha acabaria por se escapar para junto do amado, atravessando uma teia de linho que fez de ponte entre os dois lados das Portas. Vamba, tendo conhecimento, planeou novo rapto, com sucesso. Uma vez recuperada para o lado cristão, Vamba condenou-a à morte, por despenhamento, presa a uma mó de moinho. Na queda a rainha lançou uma maldição sobre Ródão: nesta terra não haverá cavalos de regalo, nem padres se ordenarão e putas não faltarão. Acredita-se que por todos os sítios onde a rainha passou, arrastada pela mó, jamais nasceu mato.

O que ganha interesse ao ler tal coisa é que não é assim tão grande o passo daqui para a mitologia. Das Portas do Ródão criaram-se Deuses, e dos Deuses lendas, mais adaptadas ao contexto histórico e cultural da altura, no caso, a invasão moura da península. É só uma suposição. Pode não ser verdade, mas não é absurda. Basta uma olhadela a algumas representações das Portas do Ródão e não é preciso grande imaginação para inventar o resto.

 

De um banco para outro, as Portas do Ródão - Vila Velha de Ródão

Representação antiga das Portas do Ródão

Vista para Oeste - Portas do Ródão

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por Ricardo Braz Frade às 20:13


1 comentário

De Ricardo Braz Frade a 29.10.2012 às 23:01

Na verdade, o mais bonito do concelho até está fora da vila. é só ter tempo e percebe-se.

Abraço.

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