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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Segunda-feira, 08.10.12

De Vendas Novas a Alcácer do Sal

Vinhas - Vendas Novas



Fonte de água - Cabrela

 

Já levo cinco dias de asfalto. Ao quinto, por razões de logística e porque quis dar um prémio a mim próprio e um repouso à sombra para o Dinis, fico numa residencial. Larguei Vendas Novas no momento certo. Andei gasto e sujo. Houve ruptura de canos e não pude tomar banho, de forma que estou com a roupa, a pele e o cabelo de ontem. Houve bifana outra vez, às onze da manhã, antes de me resvalar para dentro do carro e lhe puxar a roda até nova paragem. Pelo caminho, até Alcácer do Sal, há uma terriola, tão perdida quanto esquecida, a meias entre Vendas Novas e Casebres, chamada Cabrela. Ofereceram-me uma mini e apresentei-me ao sr. Henrique, que me contou, sem disfarçar o orgulho, que eu não me deixasse enganar pelo tamanho da vila - tem cerca de quinhentos habitantes - porque é muito mais rica em história do que qualquer uma das vizinhas, incluindo a sede de concelho. Não desconfiei. A igreja impõe-se, algumas casas têm uma dimensão próxima de palacete, e a vila está incólume nas cores tórridas que enquadram as portas e janelas, e nas fontes de água, que me deram o banho frio que não tive ao despertar, e que são pelo menos três. Ele continuou:

- Isto nem era Cabrela. Tinha outro nome. Sabe por que se chama Cabrela? 

Disse-lhe que não fazia ideia e que foi a sorte que me levou até ali. Que nem estava nos planos parar não fosse a água naquela fonte caiada a fazer-me travar.

- Então eu vou-lhe contar. 

 

Compadres, com o sr. Henrique do lado esquerdo da foto - Cabrela

 

Chuveiro público - Cabrela

 

E contou. Contou-me a estória de um cesto de vime que estava atado de alguma forma ao sino da igreja e que uma cabra que aqui pairava, sempre que ia à rama para comer, fazia o vime mexer e o sino tocar. As pessoas acostumaram-se e quando lhes chegava aos ouvidos o toque do sino exclamavam é a cabra, é a cabra!, é ela, é ela!, e daí saiu o nome Cabrela. Estes folclores são aquilo que nenhum ou quase nenhum historiador fala, porque está amarrado à matéria e à prova e ao dado estatístico. E faz muito bem em colar-se a essas certezas. Mas a história de um país, e agora dou um aditamento pessoal, está muito além do que o que se escreveu e desenhou e construiu no passado e que ainda se pode ler e ver e apreciar no presente. Há uma boa dose de invisível no quadro de uma nação. Estes contos, que normalmente têm um embrião verdadeiro e um crescer que vai sendo improvisado pelo povo, são parte da história nacional, e o facto de não vir nos manuais não retira deles qualquer riqueza. O mito é o nada que é tudo, pois é, e aplaudo de pé. Eu, pelo menos, saí de Cabrela com mais Portugal do que levava.

A conversa durou uma hora ou para lá disso. Houve tempo para chegar um outro homem, mais novo, que limpava o jardim.

- E vai daqui para o Algarve? - perguntou esse.

- O Algarve não tem nada de jeito, aquilo é só areia e mar - adiantou-se o sr. Henrique.

- Tem mulheres - atirou o outro.

E alto lá que isso é verdade. Destes aglomerados de casas que vou apanhando ao acaso, as mulheres não são a primeira coisa a aparecer. Nem a segunda. Nem a décima. Não raras vezes, o cartão de apresentação dos lugarejos mais recônditos é o banco de jardim na praça central ocupado por quinze homens com boina alinhados como se estivessem em fila de espera na Segurança Social. O que espanta é que é muito pouco frequente eu vê-los a falar uns com os outros. Olham todos em frente, para uma coisa qualquer que parece estar longe, e deixam-se estar, como se estivessem à espera de que ela chegasse.

 

Cegonha e cruz de Santiago na torre Oeste da Igreja de Santiago - Alcácer do Sal


Vista a partir do castelo - Alcácer do Sal

 

Alcácer do Sal dá uns ares de irmão gémeo de Coruche em versão ainda mais além-tejo. É cortar-lhe as patilhas ribatejanas prolongadas até meio da bochecha e espetar-lhe uma boina do litoral alentejano em cima. Já a conhecia. Está mais feia, com a zona das marisqueiras massacrada com obras que, infelizmente, estragam a vista sobre o cotovelo que o Sado desenha e as culturas que se estendem para o outro lado, em direcção a sul.

Há mais recuperações lá em cima, no morro, junto ao convento e à capela com o enigmático nome das Onze Mil Virgens - segundo reza a lenda, que vem da renascença, é dedicada a onze mil mulheres que foram assassinadas por se terem recusado a perder a virgindade; esta explicação parece-me um curto texto de panfleto turístico, e acho que há outras profundezas a explorar no que diz respeito a este culto, mais pelo lado dos símbolos do que outra coisa.

Adiante. De lá do cimo, nesse anfiteatro branco que cai vagarosamente até ao rio, vemos, ainda assim, uma bela fotografia do que é o sudoeste. Pena que logo abaixo não se veja outra coisa que não pó e escavadeiras. Sei que ela teve e vai ter dias melhores que o de hoje. A última vez que aqui parei fui feliz, numa despedida de solteiro que pôs rapaziada irresponsável, como eu e os que comigo estavam, na sua maioria malta dedicada aos prazeres do vinho, a ir dar mergulhos aos arrozais, nessas noites em que não se dorme e a matina nos espicaça a tendência para aparvalhar. Aí, Alcácer tinha o viço do pré-Verão, estava a ansiar os meses que vinham, e os dias exponenciavam a cor, um a um, e uma a uma. Vê-la a vestir-se para o Inverno traz uma amargura que não joga bem com ela. Amanhã parto cedo. Quero voltar a estar mais perto do mar.

 

Junto à Capela das Onze Mil Virgens - Alcácer do Sal


Loja de artesanato - Alcácer do Sal

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por Ricardo Braz Frade às 21:32


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