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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Sábado, 24.11.12

De Lamego a Viseu

Santuário da Nossa Senhora dos Remédios - Lamego

Com o senhor João, no escadório - Lamego

 

O Santuário à Nossa Senhora dos Remédios assemelha-se, a uma escala mais pequena, ao do Bom Jesus, mas aqui como parte integrante da cidade de Lamego, sendo o seu início num dos parques mais centrais da cidade, onde percorremos o tempo, literalmente, na estatuária alusiva às quatro estações do ano. Estão todas assinaladas mas chegaríamos lá sem a ajuda das letras: a da primavera tem ao pescoço o seu símbolo máximo, as flores, associadas às Maias; a do verão, ou no caso, o estio, tem presente uma foice, a indicar o período das colherias; a do outono está coberta de folhas de carvalho, a árvore mágica que perde a sua roupagem nesta altura do ano; e por fim o inverno, em que as duas figuras estão cobertas num manto, tapadas do frio. Depois de percorrermos o ano cíclico, e à medida que entramos no escadório, passamos para um espaço intemporal, de subida aos céus. Podemos fazer uma nítida comparação com o Bom Jesus, em que o sensorial se purifica para, com o ritual em crescendo da subida, se transformar em algo maior - no caso de Braga temos os cinco sentidos como sinónimo do que é terreno, em Lamego temos as quatro estações. Aqui, contudo, dedicam-se os passos do caminho à Nossa Senhora dos Remédios, uma das muitas invocações portuguesas a Maria, Mãe de Jesus. Trata-se portanto de um culto à Virgem, como bem se pode mirar nos magníficos azulejos que acompanham episódios da sua vida - e apercebemo-nos disso logo no primeiro, em que ela se encontra pousada numa lua e tem aos seus pés uma serpente, que a simbologia pagã, muito antes da cristã, adaptava às suas mensagens e imagens. 

Os lanços de escada têm uma decoração própria do barroco e diferem todos entre si, cada um com uma ornamentação própria. Quase no topo, antes do adro, temos um pátio com uma escultura estranha, em que uma figura, metade peixe, metade homem, toca um búzio, virado para o centro de Lamego, que parece fazer um chamamento. Estar-nos-à a chamar para assistirmos à coroação da Virgem, a Rainha dos Céus, que vemos no painel seguinte: Jesus, acompanhado por Deus-Pai, e o espírito santo por trás, na habitual forma de pomba. A Coroação de Maria é celebrada no dia 22 de Agosto e é de registar que neste data, ou pelo menos no fim de semana que mais se aproxima dela, há, em Lamego, as festas da Nossa Senhora dos Remédios, onde se organizam procissões até ao santuário. As coincidências têm quase sempre explicação.

 

O chamamento - Lamego

A coroação da Virgem - Lamego

 

O Parque de Nossa Senhora dos Remédios, que abriga o santuário e se estende nas laterais bem para lá dele, dando milhares de metros panorâmicos sobre Lamego e as serras do Douro, está também coberto de pequenos mistérios. Encontrei um senhor, João de nome, que me mostrou um coreto invulgar, montado em cimento e ferro e rede de arame, mas com um padrão que se confundia com madeira, não o sendo. É pena que esteja coberta de frases em que a Ana revela o seu amor pelo Sandro, escritas a caneta de feltro.

- A mocidade dá cabo disto tudo - disse ele enquanto encolhia os ombros, e achei giro ele ter escolhido a palavra mocidade

Depois seguiu caminho e levou-me com ele, até duas grutas esquisitas, uma chamada de São João, outra de Santo António. A de São João tem uma pequena escultura, já danificada na parte da cabeça, e suponho que seja do santo que lhe dá nome. A segunda é de mais difícil leitura. Conta com uma pia para a qual dois anjos forçam um animal, que não consigo decifrar qual seja, a deitar água da boca. Acho que qualquer uma delas foi alvo da cristianização de antigos pontos de culto, tal como a localização superior da igreja sugere.

 

As quatro estações (Estio ou Verão) - Lamego

Até Viseu - Mezio

 

Hoje vim até Viseu. É bom viajar com um GoCar. Há grupos de velhotes que largam as conversas que estão a ter e rodam o corpo todo na minha direcção. Há miúdos de mochila às costas que no intervalo do almoço, a caminho de casa, me vêem e berram correrias histéricas atrás de mim. Há carros em contramão que me vêem e sorriem para depois me levantarem o polegar. Há rapazes que me perguntam se estou mesmo a dar a volta ao país e me dão boa viagem com palmadas nas costas. Há grupos de mulheres com aventais que cochicham sobre a vida profana da vila e largam os mexericos para me dizerem adeus com os dois braços bem esticados acima da cabeça. Há adolescentes a rondar o carro e a discutirem a cilindrada enquanto entro numa café para comprar uma água. Há gente cansada que me pede boleia por uns metros e que se sente a subir às nuvens quando se sentam ao meu lado. Estou bem com o Dinis. Não o vou esquecer.

Viseu tem dom. Mais do que dar atenção aos monumentos a que o posto de turismo faz referência, há que não ter receio e percorrer a escuridão de certas ruas, e olhar a sério para a mistura de estilos que está à vista do interesse. As janelas, em várias ruas, como na Rua Escura ou na Praça de Dom Duarte, têm aquele toque snob tão rico e característico do Manuelino, diluídas no barroco e no empedrado bruto da arquitectura nortenha. Se dermos duas horas de passeio reconhecemos à cidade uma feição distinta, não confundível com umas da zona centro e nem com outras da zona norte. E se quiserem dar uso à expressão de férias turísticas, então é acabar o dia no Museu Grão Vasco, que por acaso é uma pérola no meio de tantos que se reproduzem pelo país sem qualquer assunto que o justifique, ou apanhar o lentíssimo funicular que nos leva da Sé até ao Campo de Viriato, onde está a célebre estátua do Lusitano.

 

Largo de São Teotónio - Viseu

Túnel da Rua Escura - Viseu

Funicular - Viseu

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por Ricardo Braz Frade às 20:08


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