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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Quinta-feira, 22.11.12

Do Porto a Marco de Canavezes

Ribeiro - Alvre

Requalificação urbana - Marco de Canavezes

 

Corri parte do Douro, em contracorrente. Que bonito que ele é, visto assim, de jusante até montante, a rodar um filme do final para o início. 

Conta-se que Deus definiu nascentes e marcou-lhes hora e minutos para que estas caminhassem até aos mares, deixando um rasto para trás a que hoje chamamos rios, e que a nascente do Douro adormeceu, à medida que todas as outras partiram, à data marcada, em direcção ao destino que lhes estava traçado. Quando acordou e viu o quão atrasada estava, pôs-se a caminho, desbravando tudo o que a natureza lhe deixou como intransponível. Furou rochas inultrapassáveis, atravessou vales inacessíveis, pulou montanhas, e enfim chegou ao oceano muito antes de todos os outros, que partiram antes e escolheram planuras de fácil transposição. É uma boa maneira de perceber como o norte estima a solidez deste rio, que nasce espanhol mas cresce português, até ganhar esplendor quando entalado entre Gaia e Porto, a metros de se transformar em Atlântico. 

Parece de propósito que o Douro seja uma das melhores analogias aos adjectivos nortenhos: brutal, cheio de si, enlameado e esforçado, invicto, a cheirar à humidade da terra que arranca das margens. O Tejo abranda velocidade e faz uma pausa quando chega às lezírias do ribatejo, ao ponto de nem sabermos, junto ao Mar da Palha, encostado a Alverca, o que é que dali é rio e o que é que dali é mar. O Guadiana, no extremo sul, parece andar em biquinhos dos pés que mal damos por ele ao passar Vila Real de Santo António. Já o Douro, esse fluxo portentoso que tem a pujança da água bombeada de uma mangueira, segue sem medo de se dar à morte da foz. Sabemos como começa e como acaba. É abrupto. Como o norte.

 

Cruzeiro - Marco de Canavezes

Solar dos Mourões - Marco de Canavezes

 

Marco de Canaveses não tem nada de bucólico. Tem betão e prédios com mais de cinco andares. A artéria principal, que vem do vale até ao cimo do monte, está com obras em metade do seu percurso, numa requalificação urbana que não sei quanto mais tempo demorará a terminar. É como subir às nuvens, medir o corpo inteiro de uma cidade, e perceber depois que lhe estão a engendrar uma operação à coluna vertebral. Vê-se uma exibição de um rolo compressor a alisar o cimento e ouvem-se uma colecção de barulhos industriais de escavadeiras a bater na pedra e carregadeiras a pegar na terra. À volta estão praticamente todas as marcas de cadeias de hipermercados que passam em formato comercial na televisão. De histórico, no cume, pouco há para ver. Deram-me conversas de que o bonito em Marco de Canavezes não é o concelho, mas sim algumas das freguesias e outros marcos paisagísticos, quase sempre juntos ao rio Tâmega, que vai daqui para sul até dar um abraço ao Douro, ou à Serra do Marão, a tal para lá da qual mandam os que lá estão. As barragens que construíram por cá, uma no Douro e outra no Tâmega, transformaram zonas ribeirinhas em centros de desportos aquáticos e deram oportunidade para que se aproveitassem uns espaços sem uso em praias fluviais. Cheguei tarde, a uma hora da noite, e não consegui picar todas essas recomendações, sobretudo porque a rapidez com que teria de as ver faria de mim um estafeta e não um interessado. 

 

Casario - Marco de Canavezes

Câmara Municipal - Marco de Canavezes

 

Mas destaco a imponência branca da Igreja de Santa Maria, com pouco mais de quinze anos, projectada por Siza Vieira, muito estranha e abstracta na forma. Obra polémica à data da construção, pois claro, em que não devem ter faltado vozes populares a implicarem com o modelo aplicado e com os custos que devem ter assustado qualquer orçamento. Pelo que consegui falar com os locais, e seleccionei os mais velhos que têm maior tendência para a recusa da novidade, senti que apesar de tudo havia um orgulho bairrista marcoense em por cá terem um feito do Siza. Sendo honesto, nunca assimilei estas reformas que têm sido feitas para dar nova cara à arte sacra. Fogem-me do meu conservadorismo habitual, que se acostumou a ver a planta em cruz, com a nave e os assentos a fazerem as pernas, os coros à esquerda e à direita a darem os braços, e o altar a finalizar a parte da cabeça. Esta, vista de cima, tem também a forma de um corpo, mas sem membros e acéfalo, já que acaba no pescoço. A entrada é megalómana, faz uns cinco de mim, e pelo que percebi apenas se abre em ocasiões que o justifiquem. Tem escalas ambíguas, ora com essa portada que se não medir dez metros pouco lhe faltará, ora com outras, laterais, que não devem chegar aos dois e meio. Na parede do lado da estrada principal corre uma janela, que se alinha sem interrupções durante todo esse muro, dando-lhe uma luminosidade interior invulgar para um espaço que se quer recolher numa fé isolacionista. Tenho uma má relação com alguma arquitectura moderna porque não a consigo classificar na minha escala de gosto pessoal. Admiro a coragem de romper convenções e vincar novos padrões mas saí dali sem ter a mínima noção se achava ou não piada à extravagância pálida de tal objecto. 

Pela primeira vez desde a minha partida, e a fazer jus às forças urbanas de Marco de Canavezes, vou ao cinema. O novo Bond passa à meia-noite. Li boas críticas e ouvi ainda melhores opiniões. Tirando as do Público, para não variar, em que o Vasco Câmara continua a estourar uma e duas estrelas em quase tudo o que é filme. Nem sei o que é que o gajo vai lá fazer, sinceramente. Se não gosta de nada, fique então por casa a escrever, que eu já percebi que a coisa que mais o fascina é o aparato dos seus próprios textos.

 

Igreja de Santa Maria - Marco de Canavezes

Eu na portada da Igreja de Santa Maria - Marco de Canavezes

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por Ricardo Braz Frade às 20:23


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