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Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.
Eu e um bosque de carvalhos - Meixide
Dinis escondido na fonte - Vilar de Perdizes
Sair do Concelho de Chaves para entrar no de Montalegre é mudar de religião. Estamos, a partir de Meixide, fechados nas frondosas florestas de carvalhos das terras barrosãs, nesta atmosfera de antigos Deuses pagãos. É este o chão que se eleva antes da Galiza, no Gerês, a noroeste, e no Larouco, a norte. Neste solo vem o acarinhado Padro Fontes, estranhamente católico, apadrinhar algumas das festividades cíclicas anuais que são aqui celebradas como em nenhum outro ponto do país.
A começar por Vilar de Perdizes, hoje famosa pela organização das reuniões de medicina popular, que alguma malta gosta de insultar como herege ou pagã ou bruxaria, e que o povo transmontano responde como sempre tem feito: desde que não me chateies podes dizer o que bem entenderes. A medicina popular que Vilar de Perdizes homenageia em congresso não é mais do que uma exposição de saberes antigos e tradicionais em torno de ervas e chás e licores e infusões que, segundo a herança do boca a boca e a transmissão de conhecimentos entre gerações, nos limpam o corpo e a alma de maleitas. Há, claro, uma razão para ser Trás-os-Montes o sítio onde estes puritanismos se mantiveram parte do quotidiano. O difícil acesso a sistemas de medicina mais avançados, fez com que as aldeias barrosãs procurassem solução em si próprias e em fusões de ervas que elas conseguissem fazer. Em casos mais graves, procurava-se ajuda em padres locais que as orientassem - e convém dizer que eram eles que detinham parte do conhecimento médico na idade média -, ou em bruxas que lhes fabricassem um comezinho em jeito de poção mágica que lhes atenuasse as dores.
Querer acabar com o congresso de medicina popular não é querer acabar com a feitiçaria, mas sim com uma parte, se calhar a mais importante, do folclore do Barroso. Que se defenda o progresso é uma coisa, e eu estou nesse barco. Mas nunca ouvi dizer que ele só existe se anularmos a exibição de ideias antigas, estejam ou não desactualizadas.
Escadaria de musgo - Vilar de Perdizes
Cruzes a formar uma cruz - Vilar de Perdizes
Ainda em Vilar de Perdizes, é favor não passar pela Igreja Matriz de socapa. Deve ser vista a sério. Está ali uma adivinha em pedra para a qual não tenho resposta. Olhei-a de frente e senti o susto da incompreensão. Junto à portada, por cima, há uma pequena escultura que inicialmente me pareceu figurar um índio. Andei às voltas à procura de alguém que me tivesse qualquer coisa para me contar sobre tal objecto, sem sucesso. Estive ainda durante o final da tarde à procura de documentação sobre o monumento, mas nada mais do que datas de construção e afins. Descobri, por fim, com a ajuda da avó internet, que Vilar de Perdizes tem o nome alternativo de São Miguel. Poderá então ser uma representação do arcanjo Miguel, ou de São Miguel se preferirem, a liderar o seu exército contra Satanás na guerra do Apocalipse. Faz sentido porque olhando com atenção vemo-lo armado de escudo e espada, e por baixo dele deita-se derrotada uma criatura meio disforme, animalesca, que poderá facilmente ser tida como o Diabo. Se olharmos para o quadro de Guido Reni e de seguida para a pequena estátua ali picada, percebemos a ligação. O que me continua a fazer espécie são aquelas três barras que tem acima da cabeça. Parecem mesmo penas. Parece mesmo um índio. E não sei por quê, nem para quê.
Fora de misticismos está o episódio caricato do relógio da igreja, que deu uma notícia ao país aqui há uns anos atrás, quando paroquianos quiseram calar definitivamente o bater das horas durante a noite - soava de quinze em quinze minutos -, e boa parte do povo se opôs, porque certos homens e mulheres ainda se guiavam pelos seus toques na sua vida diária e nocturna.
Escultura de São Miguel - Vilar de Perdizes
São Miguel - Quadro de Guido Reni
E em estradas que são beldades chuvosas, sempre em direcção a poente, com o Minho a chegar quase ao tacto, paramos em Montalegre. Onde o toiro não é tido como um simples mamífero mas como uma encarnação divina, símbolo superior da fertilidade. Esta posição endeusada do boi nem sequer é exclusiva à península ibérica. É conhecida a imagem da deusa Europa sentada num touro branco, que não é mais do que Zeus transformado em animal. Isto é, na mitologia grega, o próprio Zeus, pai dos Deuses, assumiu a forma de um toiro. Somos levados a entender que o continente europeu já há muito que vê o boi de uma forma diferente. Mas é nesta plataforma ocidental, na jangada de pedra de Saramago, que ele se eleva a expoente.
Já falei dele, na altura em que apanhei a achega de Tó. Esta crença do touro como símbolo maior, pagão, que remonta a acreditares pré-cristãos, não é endémica aqui de Trás-os-Montes - podemos apanhar resquícios dela em qualquer ponto do país, das achegas nortenhas, às largadas alentejanas, às touradas a cavalo e às pegas de forcados tão apreciadas nas lezírias ribatejanas, ao forcão característico das capeias raianas de Ribacôa na Beira-Alta, ou à tourada de corda de além-mar vivida nas gentes açorianas. É inegável que o homem português, e generalizando, ibérico, tem uma relação com o touro que ultrapassa a admiração. Algures entre a polémica e a tradição, encontra-se um fervor em relação ao touro que é um misto de mistério e de fascínio e de respeito, e é esse ponto de equilíbrio que pode ser achado em Montalegre, se cá chegarmos sem um pré conceito que nos apague a emoção. São aqui organizadas feiras de gado que premeiam a superioridade de um animal a outro. Existe um inabalável crer de que os terrenos lavrados com a ajuda de touros são mais férteis. O forno com que se faz o pão é nestas aldeias tapado com excrementos de boi, noutro sinal de fé e de boa fortuna deixado a este animal. E por fim as achegas, provas de força em eiras a descoberto, em que cada aldeia leva o seu boi, chamado precisamente boi do povo, depositando nele a esperança de vitória na competição.
Ouçam Torga, nesta reza que fez ao boi transmontano, e que apetece repetir com um terço à mão: "Atrai-me esta amplidão pagã, sinto-me bem a pisar um chão em que o deus vivo de ricos e pobres, de alfabetos e analfabetos, é o toiro do povo. Um deus de cornos e testículos, que, depois de cada chega e de cada vitória, a gratidão dos fiéis cobre de palmas, de flores, de cordões de oiro e de ternura. Um deus que a devoção adora sem pedir outros milagres que não sejam os de força e da fecundidade, provados à vista da infância, da juventude e da velhice. Um deus a quem se dão gemadas e cervejas para que possa inundar as vacas de sémen, as moças de esperança, os moços de certeza e a senilidade de gratas recordações. Um deus eternamente viril, num paraíso sem pecado original."
Apetece dizer isto com um terço na mão. Amén.
Castelo - Montalegre
Quadro da Europa sentada num touro no Museu do Barroso - Montalegre
Dentro de um carvalho - Montalegre
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