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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Terça-feira, 06.11.12

De Gouveia a Celorico da Beira

Fonte com Viriato à esquerda e Nun'Álvares Pereira à direita - Folgosinho

  

Folgosinho, com Linhares e com Celorico, formam um triângulo de castelos de defesa junto ao vale do rio Mondego, dos poucos grandes rios que é absolutamente português. Serviram recentemente contra Castela e, antes disso, no taco a taco que houve na zona centro contra os Mouros. A lenda da origem do castelo de Folgosinho vem bem mais de trás, dos hoje tidos como Lusitanos e do seu caudilho, o eterno Viriato. Fala-se que nasceu aqui. Os locais não têm dúvidas, foi cá, e ai de quem contrariar. Loriga, sobre a qual já escrevi, também reivindica Viriato como homem da terra, nascido e criado. Do lado espanhol, junto à província de Salamanca, são também muitos os que o querem original de lá. Os grandes caudilhos da história antiga portuguesa, elevados quase sempre a heróis nacionais, armam barafunda entre municípios em relação ao nascimento de cada um. Basta experimentar dizer a um vimaranense que Dom Afonso Henriques pode não ter nascido em Guimarães - e pode, de facto, de acordo com muito bom saber -, que ver mais ou menos como um homem pode ficar perigosamente próximo de um toiro bravo. É preciso um pouco mais do que o que há hoje para ter certezas quanto ao berço real de Viriato. Parece verosímil que as invulgares muralhas que coroam a vila foram montadas sobre dois antigos castros de datas pré-romanas, o que leva a crer que sim, que aqui houve linhas defensivas lusitanas. Daí a acertar-se num poiso de um parto que tem mais de dois mil anos, vai uma certa distância, e a essa distância chama-se mito, que, como já defendi, é essencial ao viver de Portugal.

 

Ruela - Folgosinho

Castelo e Serra da Estrela - Folgosinho

 

Certa também é esta individualidade bélica de Folgosinho. Cinco minutos por cá e já a fisgámos. Os padrões de azulejos ilustram heróis de batalhas. Numa delas está o chefe dos lusitanos, de um lado, e Nuno Álvares Pereira, de outro, ambos num misto de espiritualidade e pose de combate. Os poemas escritos nos monumentos de maior dimensão falam de baluartes impenetráveis e inultrapassáveis. Outros, vão buscar a poesia épica de Camões e dos Lusíadas. Vêem-se fontes que versam água da serra, soldado p'ra guerra. Atenta-se na parede lateral da igreja matriz e há mais palavras a puxar à luta: nós somos da fronteira as sentinelas. Mesmo o brasão, com uma mão direita pintada em ouro no centro do seu escudo, simboliza uma certa austeridade, que pode ser só coincidência mas que se enquadra bem no agressivo carácter da vila. E a lenda que lhe dá o nome, não a posso esquecer, que mete Viriato e Afonso Henriques encadeados nos mesmos parágrafos, fazendo ponte sobre os mais de mil anos que os separam. Por todo o lado Folgosinho faz questão de venerar as vitórias militares. E por todo o lado há lembranças de tempos em que Folgosinho queria andar constantemente à procura de pancadaria. Tudo em bruto, no peso conciso do granito. 

Dali pus-me definitivamente fora da Estrela.

Faltou-me Linhares, aldeia do século XII, para completar o circuito de defesas armadas na encosta norte da serra. Fui directo a Celorico. Linhares ficou-me no canto do olho até desaparecer, para trás, para o monte.

 

Igreja Matriz - Freixo

Dinis em Celorico - Celorico da Beira

 

Celorico da Beira tem ruas e ruelas que dão para falar sem parar. O burgo antigo, na freguesia de Santa Maria, contrasta casas afáveis e medievais com a outra parte da vila, a que cerca o monte acastelado e que mostra um lado citadino que está na dianteira de cidades reputadas que já visitei. As conversas de café estão cá em baixo, e vale a pena ouvi-las. Já dei com um tipo a garantir que tem no quintal uma perdiz com um quilo e meio.

- Não acreditas, vais lá ver a casa que tenho-a lá…

O outro nem respondia. Este é outro cenário comum nos adros e praças centrais. Há os homens que falam e os homens que ouvem. Os que falam tomam conta das horas. Os que ouvem de vez em quando arriscam uma exclamação, baixinha, a sibilar, mas só para valorizar os tais que passam o dia sem cerrar a boca. Celorico tem genica. Não se fica pela exposição de obra antiga para onde, infelizmente, algumas aldeias beirãs se viraram, com uma desertificação da qual, muitas vezes, não têm culpa nenhuma.

Vale a pena referir um caminho pedestre, o de São Gens. Vai até à necrópole, um mausoléu medieval, que dista uns três quilómetros do centro da vila. Só isso basta. Mas ver, a meio caminho, o Mondego a zarpar daqui até Coimbra, dá-lhe a aura que faltava.

 

Castelo - Celorico da Beira

Trilho de São Gens - Celorico da Beira

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por Ricardo Braz Frade às 19:06


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