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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Quinta-feira, 01.11.12

De Monsanto a Castelo Branco

Castelo - Monsanto

Vista do castelo para a vila - Monsanto

 

Fiquei numa casa amiga.

Ontem, no Pestiscos e Granitos, restaurante de bom garfo, quase a chegar ao chapéu de Monsanto, disseram-me que a família Buescu muito tinha feito pela vila, e que os monsantinos lhe estavam gratos, ao contrário do que pensavam de outras famílias, segundo eles, mais ou menos feudais. Quem mo disse foi um rapaz da terra, viajado. Fiz peito ao ouvi-lo. Tenho um orgulho granítico em ter dormido, hoje, na casa dos Buescus, no quarto do meu grande e velho e apertado amigo Saramago, mesmo em frente a uma fonte que me disseram ser o chafariz dos namorados, onde a água aconchega na roda das estações, e é fria no verão e é quente no inverno. 

Andei de casa em casa até às duas e meia da manhã. Conheci gente que veio da cidade para começar aqui negócio e conheci gente que começou aqui negócio e não quis ir para a cidade. Pelas duas, fui parar a uma loja que abre portas hoje, com o nome de Monsabores, na rua mais comercial da vila, uma espécie de Avenida, que tem o Petiscos, e a Taverna Lusitana, lá bem para cima, antes de se avistar o castelo. Foi por lá que ouvi jovens combinarem a ida à matança do porco. Eu, que conheci um guardado junto a uma cerca em pedra, perguntei:

- Não me digam que é o porco com quem hoje estive na galhofa…

- Pois pá, provavelmente é esse mesmo.

Houve desgosto. Eu como porco. E como porco em matanças do porco. Não escondo o falso moralismo ao exibir um sentimento amargo em relação a este em especial, mas também não esqueço umas palavras que se não me engano são atribuídas a Churchill, e que explicam qualquer coisa como o dever de um homem se recusar a comer um animal com quem tenha convivido socialmente.

 

No castelo - Monsanto

Um amigo - Monsanto

 

Comprei uma marafona. As velhinhas vendem-nas para ampliarem a parca mensalidade que lhes chega ao bolso. São as bonecas da terra, armadas em cruz de madeira, enroladas em trapos e vestidas com trajes típicos. Têm um ligação autêntica a antigos ritos de fertilidade. No dia 3 de Maio, ou no Domingo que lhe segue, as monsantinas dançam com elas junto ao castelo lançando depois vasos de barro com flores do monte abaixo. Não é por acaso que esta expressão ocorre em Maio, o florido mês da Deusa Maia, e do esplendor fecundo da natureza. A juntar, diz-se ainda que as mulher as colocam debaixo da cama no dia do casamento para que o casal seja abençoado com fértil sorte. As marafonas foram também contextualizadas historicamente quando, numa das vezes em que o castelo foi cercado, a povoação intramuros usou marafonas nas ameias pondo-as a dançar, dando a imagem de que dentro da muralha o povo vivia feliz e indiferente ao cerco.

 

Ruas da vila - Monsanto

Telhado - Monsanto

 

São de Monsanto as adufeiras que mais me habituei a ouvir. Soube de uma chamada Catarina Chitas, a Ti Chitas, como era conhecida, que segundo locais terá morrido muito velha, com cento e catorze anos disse-me um rapaz, e que em nova terá sido atingida por um raio. Tem uma história muito engraçada, a senhora. Gosto pouco de transcrever texto, mas acho que aqui é justificado, e, mais, é merecido: Fui criada no campo, a guardar gado, a guardar tudo, a guardar cabras, e porcos, e vacas. E a trabalhar, a ceifar, a sachar o trigo, a arrancar o mato, a fazer tudo. A minha sabedoria é essa. Agora, de então para cá, já fui cozinheira, já fui padeira, já fui tecedeira, já passou tudo pelas minhas mãos. Só estudos da escola é que nunca tive. Uma citação poderosa, que põe tanta coisa em perspectiva. A Ti Chitas foi gravada por muitos estudiosos portugueses, entre os quais Ernesto Veiga de Oliveira e Giacometti. Uma das recolhas que ouvi, composta pela própria, é uma terna e intemporal homenagem à sua vida de campo. 

 

Toda a vida fui pastora, e sou muito de vontade

Eu nasci pra camponesa, não foi pra ir à cidade

E a brincar com os chibinhos, é uma vida que é modesta

Ó la lai lari ló lela, não há vida como esta

 

A verdade, verdadinha, é que não há. Para o mal e para o bem, não há. É preciso vir, e vir para sentir, não é vir para passear uns mergulhos na piscina. E aí, quando falamos com esta camaradagem que não nos quer largar da conversa, percebemos-lhe a vibração. Saio com um obrigado. O país devia ter também um agradecimento profundo a um monte que se quis português. Meu santo Monsanto, é para voltar.

 

Castelo Branco entrou na rota. Lá chegarei.

 

Potro - Proença-a-Velha

Largo da Praça - Proença-a-Velha

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por Ricardo Braz Frade às 15:59


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