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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Sexta-feira, 30.11.12

De Coimbra a Condeixa-a-Nova

Aqueduto em Conímbriga - Condeixa-a-Velha 

 

São várias as ribeiras que invadem a vila, que nem veias num antebraço, deixando ao homem que a quisesse habitar uma necessidade óbvia de lhe adaptar uma arquitectura popular que conseguisse conviver com isso. As casas de Condeixa-a-Nova, não raras vezes, constroem-se em cima da água, o elemento que menos escasseia aqui no burgo. Nas suas paredes vêem-se as marcas pretas deixadas pelas alturas em que os riachos chegam mais alto. Há portas cunhadas nas fachadas que parecem absurdas no objectivo, por darem para lado nenhum. 

Muitos foram os que aproveitaram os fluxos fluviais para se transformarem em moleiros e conduzirem cadeias de água através de moinhos subterrâneos, vulgarmente chamados de azenhas, para reduzir ao ínfimo o trigo e o milho. É, por isso, mais que explicável a devoção de Condeixa-a-Nova pela sua padroeira, Santa Cristina, que segundo se diz foi morta no mar com uma mó de moinho atada ao seu corpo, a pesá-la para o fundo - podemos aliás encontrar mais resquícios desta devoção em nomes de localidades em torno da cidade de Coimbra, sendo a Póvoa de Santa Cristina a mais representativa disso.

 

Fórum romano parcialmente reconstruído - Condeixa-a-Velha

Maquete do Fórum e Templo romanos - Condeixa-a-Velha

 

Conímbriga vale a pena. É cara mas percebemos que damos o dinheiro para a tratarem bem. Tenho sempre o pé atrás com achados arqueológicos. Sem querer parecer básico, mas sendo-o, a verdade é que por vezes aquilo a que chamam de ruínas não passam de escavações a exibir chatice. Principalmente porque ninguém se dá ao trabalho de explicar o que as pedras que vemos têm para dizer. Em Conímbriga dão-nos uma aulas de cultura romana. Percebemos o que era uma cidade ordenada por Roma, imposta como matriz civilizadora de tribos indígenas que já cá viviam antes. As reconstituições estão bem feitas, com detalhe, sobretudo os mosaicos que se criavam para os pavimentos e que inspiraram uma das grandes obras humanas da cultura portuguesa - a calçada. É verdade que a influência da calçada portuguesa tem boa percentagem de árabe, sobretudo na parte ornamental, mas a sua génese é esta, a do encaixe de pedras romano, e só não vê isso quem não quer.

É a velha treta de não se conseguir apreciar o que é nosso. Nem é bem isso. É mais o facto de, por ser nosso, desligamos-lhe a atenção, como qualquer miúdo faz com um brinquedo que lhe nasce nas mãos. Uma das coisas que me faz andar por Lisboa, e ando mesmo muito, até vários quilómetros por dia, é todo aquele livro que desfolhamos por baixo de cada pé. Olhamos para a frente à procura de um brilhante que chame a atenção e nem sequer nos apercebemos do ouro que pisamos no passeio.

 

Pavimento em mosaico romano - Condeixa-a-Velha

Pavimento romano, muito similar à nossa calçada - Condeixa-a-Velha

 

É muito interessante ver como a cidade romana do primeiro século não é de todo diferente da actual. Existia um planeamento urbano classista, que bem se vê nas casas aristocráticas, maiores, com dez vezes mais divisões do que moradores, Existia um comércio de primeira, que se posicionava nas artérias principais da cidade, e lojas de segunda, que se amanhavam num buraco qualquer. Extiam praças centrais, os fóruns, de onde partiam e terminavam todas as ruas. Existia o templo, primeiro dedicado a divindades romanas, depois a cristo, mas sempre no coração da civilização, para que ninguém o esquecesse. O esqueleto citadino desenhado pelos romanos virou papel químico para qualquer outra organização urbana posterior. É assim que saio de Conímbriga, com a certeza de que, ao olhar para ela, só a vejo antiga por uma questão estética e tecnológica. Porque tem pedra e não cimento. De resto, é tão actual como o último i-phone e mais os que ainda estão para vir. 

 

Moradias sobre a ribeira - Condeixa-a-Nova

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por Ricardo Braz Frade às 21:29

Quinta-feira, 29.11.12

Da Lousã a Coimbra

Castelo e Santuário à Nossa Senhora da Piedade - Lousã

Entrada no Santuário da Nossa Senhora da Piedade - Lousã

 

Há muito castelo no país, e sobretudo se o registo for o de conhecer um sítio por dia, eles passam para nuvens na paisagem, como um eucalipto ou um carvalho ou uma oliveira. No alentejo, na linha fronteiriça, isto é ainda mais verdade. Cada vilarejo, por mais pequeno e perdido que esteja, leva uma fortificação num morro lá próximo, como lojas de fast food nas urbes americanas. Mas onde dormir, na Lousã, o castelo ganha outra propriedade. Mais que isso. Ganha todo e qualquer esforço que se faça para o ir ver. Está tapado pela parte moderna e antiga da vila, e enfia-se mesmo à entrada da serra, numa de proteger a irmã mais velha, Coimbra, de antigos ataques sarracenos que foram a constante do século XII. Logo ali ao lado, na outra margem da ribeira de São João, a findar um monte de menor altitude, mora o Santuário de Nossa Senhora da Piedade, que certifica aquele enclave com tudo o que se pode entender como religioso, e olhem que não falo só do significado que a igreja lhe dá. É marcado por um arco, em xisto, e um aviso picado na pedra do lado esquerdo: daqui para além, irá pisar lugar sagrado. Além, entenda-se, é para lá do arco, que parece aqui marcar uma passagem de dimensão. A praia fluvial que foi montada junto ao rio deve ter iniciado uma série de passeios em fato de banho pelo santuário acima porque na mesma pedra, mais abaixo, podemos ler seja regrado no vestir; no falar; no gesticular; no comer e no beber. Não há grande dúvida que se quer fazer do grupo de capelas que ali se juntam um pequeno jardim solene. E bem. Está ali uma boa parte dos segredos do país. Vive aqui, neste castelo, e desde sempre, o desgosto da Princesa Peralta.

 

A Fonte da Vida - Lousã

Ribeira de São João - Lousã

 

Mais uma vez se comprova que qualquer sítio do país que tenha um culto associado, hoje cristão, antigamente pagão, e sempre acompanhado de lendas e mitos, criados e recriados pela sabedoria de um povo que nasceu com ele nos pés, é bonito. É bonito nem que seja pela contemplação, à falta da estética. O castelo e santuário que põem Lousã, as suas aldeias, e a sua serra, como obrigatórias, estão cobertos de lendas misteriosas que vêm ao de cima quando os olhamos, juntos, em par, mesmo sem lhes saber uma linha do folclore que lhes está por trás. Se olharmos com olhos de fábula para este quadro bucólico, percebemos por que razão ainda o povo acredita na magia das coisas e no que está para lá da matéria. Diz-se que se ouve, de quando em vez, o chorar da Princesa Peralta, em luto pela morte do seu amado Lausus - Lausus, que viria a originar Lousã -, e que no castelo ainda se escondem os seus tesouros. Acho, mais uma vez, que a lenda mais não é mais do que uma frequente readaptação de antigas crenças, anteriores ao cristianismo, e que já lembrei noutros textos: as das mouras encantadas. Estes cultos são periodicamente actualizados conforte a realidade que a história vai oferecendo aos séculos. Seja a guerra entre cristãos e mouros, entre portugueses e espanhóis, entre ibéricos e franceses, as moiras encantadas são um caso de estudo em Portugal, e uma constante nos nossos livros de contos. Podem estar disfarçadas de milhentas formas, mas se lhes tirarmos a roupa toda e deixarmos apenas osso, encontramo-las, sempre numa presença divina, de fada, tão belas que enfeitiçam, com boas doses de bondade e vingança, prontas a usar qualquer uma delas conforme a abordagem de quem tenha a dúbia felicidade de as ver.

 

Paços da Universidade - Coimbra

Escadas de Minerva - Coimbra

 

É difícil ter Coimbra à frente e pô-la em papel. Não só por tudo o que há para dizer, que dava uma colecção de três volumes com envergadura bíblica, mas porque Coimbra não se deixa conhecer assim. Seria preciso namorar com uma estudante da área de humanidades, e acompanhá-la diariamente na subida à Faculdade de Letras, na Alta da cidade, para perceber como é ser jovem por cá. Seria preciso beber shots sem fim, a esquecer a ressaca da manhã, e a do amanhã, e a do depois de amanhã, e deixar que o álcool me tirasse forças, e sentir essa irresponsabilidade estudantil que Coimbra, mais que qualquer outra, ensina, como se fosse cadeira obrigatória. Seria preciso vestir-me de preto e roçar-me no meio de capas negras e cantos de praxe, para entender todo este ritual até ao último ponto da última página. Seria preciso ver que a espinha afinal sempre pode arrepiar quando a ópera do Fado de Coimbra se faz tocar em serenatas dedicadas à meta máxima de qualquer homem: a mulher. Seria preciso perceber o que são estes cantos, estas torres, estes arcos e estes nomes, que me causam dúvida e estranheza, como a misteriosa Via Latina, ou as escadas dedicadas a Minerva, por onde qualquer pessoa sobe e desce sem se aperceber disso. Seria preciso mais do que ouvir os três sinos da torre universitária, o da cabra, o cabrão, e o balão, cada um com o seu significado, cada um com o seu sentimento, e teria de sentir o toque da cabra a alterar-me os trejeitos ao mandar-me para as aulas, para o almoço, ou para casa. Seria preciso fazer piscinas entre a Baixa e a Alta, a primeira em que estudantes são doutores, a segunda em que mandam comerciantes, e perceber como duas zonas de uma só cidade podem ser tão desiguais que justificariam declarações de independência de qualquer uma das partes. Seria preciso cá comer, cá guiar, cá dormir e cá acordar.

Seria preciso cá viver.

Como sempre quis fazer.

 

Arco de Almedina - Coimbra

Porta Férrea - Coimbra

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por Ricardo Braz Frade às 20:03

Quarta-feira, 28.11.12

De Arganil à Lousã

Dinis nas aldeias do xisto - Comareira

Fonte dos namorados (à esquerda) - Aigra Nova

 

Eu acho que eles não sabem. Os de cá, destas aldeias artesãs, cozidas em xisto, não percebem o fascínio que me dão quando divago pelas serras onde se deixaram afogar. Este novo conceito do Roteiro das Aldeias do Xisto, que desbrava caminhos pedestres, muito provavelmente os mesmos que outrora alguns pastores usaram nas transumâncias e outros moleiros trilharam para fazerem suar moinhos, veio destapar gente que andava escondida nas paredes montanhosas do Trevim e da Lousã, e que, não desfazendo, têm mais para me contar que um bairro inteiro de Lisboa.

No concelho de Góis podemos conhecer quatro destas aldeias de seguida. Um bom imprevisto fez com que apenas tenha parado em três: Comareira, Aigra Nova e Aigra Velha. Faltou-me a Pena, acedida por uma estrada empedrada.

A primeira aparece quase nem se dar por ela. É a Comareira, a seguir a uma curva de cotovelo que guarda uma casa que parece um brinquedo de exposição e um riacho.

Mais acima, vem Aigra Nova, a pedir um descanso numa tábua de pedra. Tenho uma máscara de entrudo que é original daqui. Antes, nas aldeias de Góis, aproveitavam-se as árvores e os seus cascos para camuflar a cara, e improvisavam-se uns trapos para cobrir o corpo. Não só por uma questão de fundo de maneio, obviamente muito mais em conta do que comprar uma fantasia qualquer numa loja de esquina, mas sobretudo porque ligava esta fase do ano àquilo que importava, a natureza. Era depois feito um circuito entre as várias povoações sendo que a regra era sempre a mesma: não haveria ética nem moral a pesar na consciência de ninguém e tudo era mais que válido. É com base nestas tradições que vejo com amargura a nossa aproximação ao carnaval brasileiro, sobretudo em zonas mais urbanas, em que as pessoas não fazem ideia do quão perto do ridículo estão quando expõem pernas e umbigo, ao léu, a meio do Inverno.

 

Máscaras do carnaval de Góis - Aigra Nova

Até Aigra Velha - Roteiro das Aldeias do Xisto

 

Foi em Aigra Velha, depois de umas curvas que vão subindo no sentido do Trevim, que passa em muito os mil e duzentos metros de altitude, que encontrei o inesperado. Aigra Velha está meio abandonada e não me pareceu que, mesmo noutros tempos, tenha tido muito mais movimento do que aquele que hoje mal se vê. Escreve-se num placar à entrada da vila que as casas tinham ligações interiores entre si e que havia apenas uma rua na aldeia. Esta era fechada ao exterior porque, vou citar, por aqui andaram lobos. Digo eu que essa disposição foi a forma que arranjaram de proteger o gado da boca desses carnívoros que agora só se conseguem achar mais a norte. Esta relação vingativa entre pastor e lobo ibérico é bem observável a norte do Douro, onde assisti a grupos de pessoas queixarem-se das ovelhas e carneiros que já tinham sido abocanhados por ataques furtivos de lobos. Mas continuando que o Douro já lá vai. Tentava procurar o início e fim da tal ruela única de Aigra Velha e avistei um senhor de cabelo branco, com a pêra mais saliente que o resto da barba, camisa axadrezada, mangas arregaçadas, a transportar lenha e erva num carrinho de mão, daqueles com roda destacada na frente. Vive ali sozinho com a mulher mas ela estava fora. Têm a aldeia inteira para eles.

- Faço hoje um mês desde a última vez que saí daqui para ir à Lousã - disse-me ele.

Queria conversa, claro. Ouvi-o antes a falar com a cadela, a Patusca, e a pedir às galinhas que saíssem da frente. Nessa altura, ainda não se tinha apercebido de mim. Foi quando me viu a pisar uma pequena descida com rede de arame à esquerda e à direita, a separar terrenos aráveis de terra batida, que o vi sorrir. Gente, deve ter ele pensado no aceno que me deu. 

Fiquei umas boas duas horas à conversa. Chegar a Pena tornou-se impossível. Que se lixe. Valeu a pena.

 

Eu e o Dinis - Roteiro das Aldeias do Xisto

Rua dos Carvalhos - Aigra Nova

 

- Então mas sempre viveu cá?

- O meu cunhado sim. Entretanto ele morreu. E vim para cá com a minha mulher. Tinha umas terras ali para a Lousã, mas regar aquilo ficava muito caro. Há lá batatas que nunca viram água. Aqui é de borla ou quase. Tenho a horte e trouxe o gado todo para cá.

Mostrou-me a casa, parcialmente reconstruída.

- Está a ver ali, aquele tejadilho novo?

- Estou, estou.

- É aí. Vivemos na sala porque o quarto ainda não está em condições. Recuperámos a sala e a cozinha.

Era, das casas centrais, a única que parecia habitável. 

Conversámos como se faz em mesas de café a jogar à moeda. Eu sobre a viagem, ele sobre o que era viver ali.

- A minha mulher foi a Góis e pedi-lhe para comprar lâminas de barbear. Trouxe-me cinco daquelas descartáveis que não dão para nada. Os pelos enfiam-se ali no meio… Usei duas para o lado esquerdo e duas para o lado direito. Percebi que já não dava para o resto e deixei a pêra.

Depois contou-me uma pequena história de uma pessoa que conhecia de Gouveia, quando lhe falei que o meu lado paterno era de lá.

- Não sei se o senhor conhece. Era um gajo que se ia matando num acidente de carro. Devia estar numa mudança alta, e não o conseguiu agarrar numa curva. Espetou-se numa árvore. Safou-se dessa. Uns dias depois estava no cimo de um poste de electricidade, deve ter trocado lá uns fios, apanhou um choque e morreu. 

Começou-se a rir e eu fui com ele. É saudável um tipo rir-se de coisas sérias.

- Isto quando um gajo tem de morrer, não há volta a dar.

Durou muito mais tempo. Até quase ver que o céu estava a mudar de cor. E só aí lhe perguntei o nome.

- Coriolano.

- Ricardo - respondi eu a esticar a mão -, e da próxima vez que cá vier falamos novamente.

- Sim, não há como não dar comigo.

 

A Lousã veio tarde. Amanhã dou-lhe uma achega.

 

Com o Senhor Anselmo - Aigra Velha

Senhor Anselmo a falar da aldeia - Aigra Velha

Praça Cândido dos Reis - Lousã

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por Ricardo Braz Frade às 21:06

Terça-feira, 27.11.12

De Santa Comba Dão a Arganil

Casa de Salazar - Vimieiro

Rio Mondego - Tábua

 

Acabei por ir parar ao Vimieiro porque o caminho até Arganil tinha de passar por ali. No Vimieiro, se não sairmos da estrada principal, damos com a casa onde Salazar nasceu. Para quem vem de Santa Comba Dão fica do lado direito, antes de chegar à Escola Salazar. A casa está apodrecida, a milímetros de ruir. É suportada por três ferros cilíndricos que, com apoio no chão, lhe seguram parte do tecto. Há uma placa por baixo das telhas que informa ter sido ali que ele veio ao mundo. Pelo teor das palavras dedicadas, suponho que lá tenha sido colocada por admiradores e não detractores. 

Daqui para a frente notamos que o granito esmorece. Passamos à segunda fase da Beira, em que a pedra deixa de ser um bloco bruto e acinzentado para passar a uma elegante tábua lapidada e da cor da terra molhada.

É o xisto, e mais as gentes que se usam dele. 

Deram-lhes uma geografia oficial.

São as aldeias do xisto.

 

Pinhal ardido - Coja

Fonte das Moscas - Benfeita

 

Vêem-se muitas, sobretudo junto a Góis, Miranda do Corvo e Lousã. 

A rondar Arganil, poderia visitar a história do Piodão, a famosa terra que é uma cascata de casarios a discorrer vale abaixo, as da base iguais às do topo, apenas cortadas pela brancura reflectora da igreja. Tão bela e sensível que a baptizaram de aldeia presépio. 

Tinha também, aqui bem perto, a aldeia de Fajão, que se a visse me desatava um nó de saudade, e que escreveu tão bem humoradas conversas no excelente livro que é o "Os Contos de Fajão" compilados pelo Padre Nunes Pereira, a que várias vezes do ano recorro para me lembrar de como as coisas simples me fazem rir. 

Mas fui antes a Benfeita, porque para as outras duas já há recomendações suficientes. Benfeita fica enroscada na Serra do Açor. É dividida por um barulho que parece de gelo a rebolar no rio, vindo da ribeira da mata, primeiro, e da sua junção com a do Carcavão, depois. Apesar de estar no catálogo do roteiro do xisto, é talvez aquela em que menos lhe assenta o nome: as casas são, na sua vastíssima maioria, de fachada branca. Se atravessarmos as pontes até ao outro lado da aldeia, o menos povoado, e chegarmos à Fonte das Moscas, damos com a terra esticadinha ao máximo diante de nós, e em toda a sua largura é preciso procurar para lhe descobrir uma pitada que seja dessa pedra que tantas vezes é tida como bandeira de certa parte da Beira. Mas depois, num amontoado mais concentrado de moradias, avistamos a torre. Essa sim, xistosa dos pés à cabeça, e com uma interessante melodia de sinos que responde ao título do livro do Hemingway.

Quando a torre foi construída passava-se o ano de 1945 que, para qualquer concurso de memória é visto como o do fim da segunda grande guerra. Na altura, deram-lhe o nome de Torre do Salazar, embora na aldeia fosse conhecida como a de Santa Rita, por estar ao lado de uma capela que lhe presta culto. No dia 7 de Maio desse mesmo ano, dobraram-se os sinos pela primeira vez, em comemoração ao final do conflito que pôs quase metade do mundo contra quase outra metade. Aquilo pegou, e a partir daí criou-se o hábito de, nessa precisa data, se ouvirem 1620 badaladas, uma por cada dia que a Europa esteve em guerra. Depois do 25 de Abril e da reformulação de nomes que remetessem para o passado salazarista, alterou-se o seu nome para outro, muito em conta com as canções anuais que canta: a Torre da Paz. 

 

Capela de Santa Rita e Torre da Paz - Benfeita

Até Arganil - Coja

 

E finalmente, pelo mesmo caminho, vim até Arganil. O comandante informou-me que os bombeiros apenas contavam uma camarata, e que pelos vistos, na presente noite, estaria ocupada apenas por mulheres. Ainda lhe disse que estou há dois meses sem mulher e que não seria por aí, que quem se aguenta dois meses faz o sacrifício de se aguentar mais uns dias. Continuei que não contava vestir-me e despir-me à frente delas só para as atiçar mas ele deve ter notado a mentira na minha voz e confirmou que eu ficaria muito melhor fora dali. Mas foi cordato e recomendou-me outro sítio. 

Que bem me recebeu a Santa Casa da Misericórdia. Por trás do lar de idosos está guardado um bungalow que tem pele e ossos em madeira, novinho em folha, onde hoje fico a dormir. Fica no início da Mata do Hospital. A mata é o que mais há para ver. Fizeram dela uma aldeia. No meio dos carvalhos há poemas populares escritos na pedra, nomes de ruas cravados em troncos, quase avenidas com túneis de arbustos, mesas e assentos para jantares e festins de dezenas, árvores dedicadas a cada uma das Casas da Misericórdia, parques para putos desenfreados atirarem a inquietação e miradouros com bancos suficientemente pequenos para só lá caberem pares de namorados.

Não tinha qualquer dúvida antes, nem sequer fiz a viagem para o comprovar. Que Portugal tem muito mais boa gente que má, é afirmação fácil e mais que comprovada. O que não sabia, e fiquei a saber, é que se pudéssemos vender para fora uns pacotes de bondade, pelo menos aquela que temos a mais, por esta altura o superavit já teria dado cabo da dívida até ao último tusto. 

 

Bungalow na Mata do Hospital - Arganil

Banquete - Mata do Hospital

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por Ricardo Braz Frade às 22:36

Segunda-feira, 26.11.12

De Viseu a Santa Comba Dão

Praia fluvial - Caldas de Sangemil

Com o Dinis - Entre Dão e Mondego

 

Estamos entre Dão e Mondego, tão próximos que facilmente os confundimos. Passeei-me pelo primeiro, outro dos rios portugueses a emprestar o nome a uma região de vinhos, provavelmente a terceira que nos lembramos depois do Douro e do Alentejo. Vêem-se vinhas a esse propósito, a combinar padrões com esta forma de granito a que as bocas populares vulgarizaram no nome de dente de cavalo

É engraçado ver que, nestas cercanias, se nos desviarmos das auto-estradas de Viseu e corrermos a nacional para sul, damos com uma pequena coluna da história de Portugal numa recta de cerca de vinte quilómetros. Começa depois de Sangemil e Beijós, quando vemos Cabanas de Viriato a aparecer. Aqui nasceu Aristides de Sousa Mendes, futuro cônsul. Termina um pouco adiante, quando chegamos a Santa Comba Dão. Aqui, ou muito perto - em Vimieiro -, cresceu António de Oliveira Salazar, futuro Presidente do Conselho. Tinham quatro anos de diferença e nos finais do século XIX seria impossível imaginar que um dia se iriam encontrar e construir um episódio dramático em plena segunda guerra, que actualmente deu ideias para um filme agora em exibição. Não vou contar o que se passou porque já deverão saber. E se não souberem sempre podem ir ao cinema e gozar do factor surpresa.

Santa Comba Dão, presentemente, é mais conhecida por ter acompanhado a vida de Salazar do que propriamente pelo seu outro passado, que falava de uma terra apoiada numa paisagem à beira-rio, e que lhe deu a alcunha de Princesa do Dão. É pena, mas percebe-se - é impossível dar à luz um senhor que governa o país durante trinta e cinco anos a fio e não se ficar conhecida no mapa por isso. A verdade é que Santa Comba Dão está um brinco. Não lhe vi uma parede vandalizada, nem um papel no chão. A zona da ribeira das hortas é uma sala de tranquilidade, onde algumas mulheres iam, e mais raramente ainda vão, aproveitar as suas águas para a rega das hortas e a lavagem da roupa. Atravessamo-la por uma pequena ponte de origem medieval ou romana, ou outra feita em madeira, a terminar um passadiço quieto, decorado com bancos e canteiros. Muitas cidades portuguesas são mais bonitas que Santa Comba, mas estão mais feias que ela.

E já que comecei o texto por falar de Cabanas de Viriato e de Santa Comba, falarei de uma e de outra de seguida. Da primeira, do curioso ritual da dança dos cus. Da segunda, da trágica lenda que lhe deu nome.

 

Estátua de Viriato - Cabanas de Viriato

Centro histórico - Santa Comba Dão

 

A dança dos cus faz-se no carnaval de Cabanas de Viriato e envelheceu para bem mais de cem anos. A coreografia em si não tem grande saber: há duas filas, supostamente uma de rapazes e outra de raparigas, em que cada elemento de uma vai chocando o seu cu no elemento da outra sempre que a filarmónica muda o ritmo da valsa. Disse supostamente porque esta forma não é exactamente cumprida, já que é frequente ver-se um embate de cus apenas masculinos ou apenas femininos. A máscara usada não obedece a qualquer tipo de norma, isto é, cada pessoa tem autonomia para se vestir como bem entender. 

Não se pode dizer que haja aqui um código simbólico complexo, como acontece em Podence, por exemplo - muito embora o choque de cintura entre cus lembre os dos chocalheiros nas mulheres de Trás-os-Montes. Mas podemos fazer um paralelismo baseado naquilo que já escrevi: que o carnaval celebra a alvorada da natureza e entende-se que, nesta altura de tempo sem lei, a diabrura não é condenável. Nesse aspecto, uma atitude desta índole, que normalmente seria apelidada de grosseira, é tida como praticamente necessária. 

Quando há descanso da dança, vão às entrudadas, este sim um fenómeno transversal a todo o país, em que vários aldeões são visados com quadras e declamações de mal dizer. E o lesado tem de ouvir e calar, enquanto exibe o corar nas risadas dos restantes.

 

Casas típicas - Santa Comba Dão

Abrigo de patos na Ribeira das Hortas - Santa Comba Dão

 

Já em Santa Comba, na Avenida General Humberto Delgado - interessante escolha de nome, na antiga cidade de Salazar -, há mais um painel de azulejos que ilustra a lenda da cidade. Escorre tragédia por todo o lado. Assume até proporções de fita de terror gore

Diz-se que aqui existiu um convento onde viviam cinco dezenas de freiras, junto às margens do rio Om. Na altura em que os mouros vinham em frenética cadência conquistadora pela península acima, lá se soube da conquista de Coimbra, acontecimento que pôs as freiras a rezar de medo. Quando um dos sarracenos chegou finalmente à porta do convento, a madre Comba serenou ânimos e foi abrir a porta ao invasor. Alimentou uma longa conversa com ele e este confessou-lhe que os soldados que conquistaram aquelas terras tinham ordens do seu rei para ficarem com as freiras para si. A madre disse que preferia que eles as matassem a todas do que serem obrigadas a virar costas à sua fé. O árabe respondeu que não iria matar uma mulher que estava destinada a servi-lo e abandonou aquelas paragens para mais tarde voltar. Quando regressaram, os sarracenos prepararam-se para fazer as suas escolhas e ficaram surpreendidos com a beleza das freiras. Quando o primeiro soldado exprimiu a sua preferência de todo o leque que dispunha, Comba chamou a jovem freira que, após um beijo de despedida da sua madre, sacou de um punhal e cravou-o no coração. As restantes monjas fizeram o mesmo e caíram mortas no chão. Comba também. Os ecos do martírio duraram centenas de anos na memória deste povo, que baptizou a povoação com o nome de Santa Comba D'Om, mais tarde Santa Comba Dão. 

Existe, no Alentejo, uma Santa igualmente conhecida por Comba, com uma história de mártir semelhante, e onde se conta ter rebentado uma fonte de água pura do sítio onde o sofrimento se deu.

 

Igreja Matriz - Santa Comba Dão

A lenda de Santa Comba na Avenida Humberto Delgado - Santa Comba Dão

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por Ricardo Braz Frade às 18:23

Domingo, 25.11.12

Interlúdio

Tentei sair, mas a chuva era tanta que num quilómetro voltei para trás. Foi boa ideia porque ainda não parou de cair. Peço desculpa pela falta de texto de hoje. Com um tempo assim, nem dava para ver o que fosse. Amanhã dão melhoria. E volto à escrita.

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por Ricardo Braz Frade às 18:02

Sábado, 24.11.12

De Lamego a Viseu

Santuário da Nossa Senhora dos Remédios - Lamego

Com o senhor João, no escadório - Lamego

 

O Santuário à Nossa Senhora dos Remédios assemelha-se, a uma escala mais pequena, ao do Bom Jesus, mas aqui como parte integrante da cidade de Lamego, sendo o seu início num dos parques mais centrais da cidade, onde percorremos o tempo, literalmente, na estatuária alusiva às quatro estações do ano. Estão todas assinaladas mas chegaríamos lá sem a ajuda das letras: a da primavera tem ao pescoço o seu símbolo máximo, as flores, associadas às Maias; a do verão, ou no caso, o estio, tem presente uma foice, a indicar o período das colherias; a do outono está coberta de folhas de carvalho, a árvore mágica que perde a sua roupagem nesta altura do ano; e por fim o inverno, em que as duas figuras estão cobertas num manto, tapadas do frio. Depois de percorrermos o ano cíclico, e à medida que entramos no escadório, passamos para um espaço intemporal, de subida aos céus. Podemos fazer uma nítida comparação com o Bom Jesus, em que o sensorial se purifica para, com o ritual em crescendo da subida, se transformar em algo maior - no caso de Braga temos os cinco sentidos como sinónimo do que é terreno, em Lamego temos as quatro estações. Aqui, contudo, dedicam-se os passos do caminho à Nossa Senhora dos Remédios, uma das muitas invocações portuguesas a Maria, Mãe de Jesus. Trata-se portanto de um culto à Virgem, como bem se pode mirar nos magníficos azulejos que acompanham episódios da sua vida - e apercebemo-nos disso logo no primeiro, em que ela se encontra pousada numa lua e tem aos seus pés uma serpente, que a simbologia pagã, muito antes da cristã, adaptava às suas mensagens e imagens. 

Os lanços de escada têm uma decoração própria do barroco e diferem todos entre si, cada um com uma ornamentação própria. Quase no topo, antes do adro, temos um pátio com uma escultura estranha, em que uma figura, metade peixe, metade homem, toca um búzio, virado para o centro de Lamego, que parece fazer um chamamento. Estar-nos-à a chamar para assistirmos à coroação da Virgem, a Rainha dos Céus, que vemos no painel seguinte: Jesus, acompanhado por Deus-Pai, e o espírito santo por trás, na habitual forma de pomba. A Coroação de Maria é celebrada no dia 22 de Agosto e é de registar que neste data, ou pelo menos no fim de semana que mais se aproxima dela, há, em Lamego, as festas da Nossa Senhora dos Remédios, onde se organizam procissões até ao santuário. As coincidências têm quase sempre explicação.

 

O chamamento - Lamego

A coroação da Virgem - Lamego

 

O Parque de Nossa Senhora dos Remédios, que abriga o santuário e se estende nas laterais bem para lá dele, dando milhares de metros panorâmicos sobre Lamego e as serras do Douro, está também coberto de pequenos mistérios. Encontrei um senhor, João de nome, que me mostrou um coreto invulgar, montado em cimento e ferro e rede de arame, mas com um padrão que se confundia com madeira, não o sendo. É pena que esteja coberta de frases em que a Ana revela o seu amor pelo Sandro, escritas a caneta de feltro.

- A mocidade dá cabo disto tudo - disse ele enquanto encolhia os ombros, e achei giro ele ter escolhido a palavra mocidade

Depois seguiu caminho e levou-me com ele, até duas grutas esquisitas, uma chamada de São João, outra de Santo António. A de São João tem uma pequena escultura, já danificada na parte da cabeça, e suponho que seja do santo que lhe dá nome. A segunda é de mais difícil leitura. Conta com uma pia para a qual dois anjos forçam um animal, que não consigo decifrar qual seja, a deitar água da boca. Acho que qualquer uma delas foi alvo da cristianização de antigos pontos de culto, tal como a localização superior da igreja sugere.

 

As quatro estações (Estio ou Verão) - Lamego

Até Viseu - Mezio

 

Hoje vim até Viseu. É bom viajar com um GoCar. Há grupos de velhotes que largam as conversas que estão a ter e rodam o corpo todo na minha direcção. Há miúdos de mochila às costas que no intervalo do almoço, a caminho de casa, me vêem e berram correrias histéricas atrás de mim. Há carros em contramão que me vêem e sorriem para depois me levantarem o polegar. Há rapazes que me perguntam se estou mesmo a dar a volta ao país e me dão boa viagem com palmadas nas costas. Há grupos de mulheres com aventais que cochicham sobre a vida profana da vila e largam os mexericos para me dizerem adeus com os dois braços bem esticados acima da cabeça. Há adolescentes a rondar o carro e a discutirem a cilindrada enquanto entro numa café para comprar uma água. Há gente cansada que me pede boleia por uns metros e que se sente a subir às nuvens quando se sentam ao meu lado. Estou bem com o Dinis. Não o vou esquecer.

Viseu tem dom. Mais do que dar atenção aos monumentos a que o posto de turismo faz referência, há que não ter receio e percorrer a escuridão de certas ruas, e olhar a sério para a mistura de estilos que está à vista do interesse. As janelas, em várias ruas, como na Rua Escura ou na Praça de Dom Duarte, têm aquele toque snob tão rico e característico do Manuelino, diluídas no barroco e no empedrado bruto da arquitectura nortenha. Se dermos duas horas de passeio reconhecemos à cidade uma feição distinta, não confundível com umas da zona centro e nem com outras da zona norte. E se quiserem dar uso à expressão de férias turísticas, então é acabar o dia no Museu Grão Vasco, que por acaso é uma pérola no meio de tantos que se reproduzem pelo país sem qualquer assunto que o justifique, ou apanhar o lentíssimo funicular que nos leva da Sé até ao Campo de Viriato, onde está a célebre estátua do Lusitano.

 

Largo de São Teotónio - Viseu

Túnel da Rua Escura - Viseu

Funicular - Viseu

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por Ricardo Braz Frade às 20:08

Sexta-feira, 23.11.12

De Marco de Canavezes a Lamego

Miradouro - Gove

Socalcos - Santa Cruz do Douro

 

Ontem não cheguei a ir ver o Bond. A fita estava estragada de forma que tive de arranjar alternativa na outra sessão, a única que sobrava. Estava a rodar aquele filme em que os vampiros têm penteados de Cascais e os lobisomens vão ao ginásio para poderem usar camisas de algodão muito justas. Tinha tantas saudades de me sentar hora e meia no escuro só para ver malta a fingir-se passar por outra pessoa que até desculpei o facto do filme ser fraquito. 

Voltei ao Douro hoje, desta vez andei sempre com ele pela mão, de Santa Cruz do Douro até à Régua. Estes gigantes degraus escavados nas serras que apertam o rio são um trabalho de mestre, que nem certos oleiros conseguiriam fazer a moldar o barro. Aqui podemos ver o que significam realmente estes socalcos, um dos melhores casos que o mundo tem para dar de como o homem consegue mudar a paisagem, e, às vezes, como aqui, para melhor. Estas formas resultam quase sempre de uma necessidade humana, sendo este exemplo uma tentativa muito bem sucedida de tornar funcional um terreno que na origem não tinha nada mais para dar que não miradouros. Olhar para a escadaria imensa do Douro vinhateiro mostra como se pode forçar a terra a ser outra coisa que não o que a mandaram ser. Mostra uma vontade inesgotável do Homem em contrariar uma força que, à partida, seria maior que ele, a da natureza. E mostra, sobretudo, uma teimosia de criança em querer arar solos que os deuses quiseram áridos. 

O fascinante é que se conseguiu. Será difícil pensar no Douro na sua versão original e achar que ele seria mais belo antes do que é agora.

 

Vista para o Douro - Vila Jusã

Vista para o Douro - Barqueiros

 

Que curiosos são estes espigueiros em pedra, que sobressaem nos declives suicidas das serranias do vinho, feitos estátuas de gente célebre, a estenderem-se como túmulos, na horizontal, muitas vezes em grupos de dezenas, em eiras comunitárias. Estão a cada curva sinuosa, se nos dermos à atenção de os procurar. Hoje tidos como uma etiqueta do que é a pontuação paisagística do norte, já foram antes apenas um meio para um fim: pôr o milho a seco e livre de ser destruído. Sendo este solo húmido a estrada de muitos animais roedores, houve necessidade de se levantar este armário do chão - sobre pequenos pilares que o sustentam no ar -, cortar-lhe umas fissuras laterais, ora na pedra, ora na madeira, e deixá-lo parado a fazer esse serviço de armazenamento e de secagem. São quase sempre colocados em lugares de fortes bafejos, desabrigados a grande altitude, para acelerar o processo de enxugar o cereal.

Assim que passo a ponte na Régua deixo-os quase todos para trás.

A chula está a acabar.

 

Espigueiro - Pinheiro

Taberna - Lamego

 

Em Lamego aconteceu-me, pela primeira vez, ver recusada uma dormida num quartel de bombeiros que não por uma razão justificada. 

- As ordens que tenho é que não aceitamos ninguém - disse-me a mulher da secretaria -, desde que tivemos uma má experiência com um senhor que nos pediu o mesmo que o senhor está a pedir.

- A sério? Então?

- Então era um espanhol que roubou o carro ao comandante e foi até Espanha com ele. Tivemos de o ir lá buscar.

Comecei-me a rir.

- Mas ouça, por causa desse caso cortaram todos os outros? Também sei de muitos desconhecidos que me tentaram enganar e não é por isso que me deixo de dar com gente que não conheço. Já fiquei em dezenas de quartéis nesta viagem, pode telefonar para qualquer um deles e saber que não roubo nada a ninguém.

- Pois, desculpe, são as ordens que tenho.

Quando ouço esta frase, o meu ouvido faz soar o alarme mental que avisa para me ir embora. São as ordens que tenho, que numa linguagem futebolística corresponde a um, epá, tira a bola daqui pra fora, tem matéria suficiente para fazer um capítulo de portuguesismos. É semelhante àquelas empresas que invocam o sistema interno para não nos responderem às questões. Lá me sugeriram um albergue de peregrinos de Santiago, que estava fechado. Eu que hoje até fui bom samaritano e dei boleia a um senhor já de certa idade durante três ou quatro quilómetros e que ficou encantado com o GoCar. Caraças para esta treta de conversa sobre o karma.

Lamego, entretanto, continua como o conheci: bonito. Acho que disse que não voltava à província de Trás-os-Montes mas pelos vistos menti. O texto já vai grande. Amanhã falarei do que queria falar. Do altar da vila, o Santuário da Nossa Senhora dos Remédios. 

 

Moradia e Igreja de Santa Maria de Almacave - Lamego

Largo de Camões - Lamego

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por Ricardo Braz Frade às 20:37

Quinta-feira, 22.11.12

Do Porto a Marco de Canavezes

Ribeiro - Alvre

Requalificação urbana - Marco de Canavezes

 

Corri parte do Douro, em contracorrente. Que bonito que ele é, visto assim, de jusante até montante, a rodar um filme do final para o início. 

Conta-se que Deus definiu nascentes e marcou-lhes hora e minutos para que estas caminhassem até aos mares, deixando um rasto para trás a que hoje chamamos rios, e que a nascente do Douro adormeceu, à medida que todas as outras partiram, à data marcada, em direcção ao destino que lhes estava traçado. Quando acordou e viu o quão atrasada estava, pôs-se a caminho, desbravando tudo o que a natureza lhe deixou como intransponível. Furou rochas inultrapassáveis, atravessou vales inacessíveis, pulou montanhas, e enfim chegou ao oceano muito antes de todos os outros, que partiram antes e escolheram planuras de fácil transposição. É uma boa maneira de perceber como o norte estima a solidez deste rio, que nasce espanhol mas cresce português, até ganhar esplendor quando entalado entre Gaia e Porto, a metros de se transformar em Atlântico. 

Parece de propósito que o Douro seja uma das melhores analogias aos adjectivos nortenhos: brutal, cheio de si, enlameado e esforçado, invicto, a cheirar à humidade da terra que arranca das margens. O Tejo abranda velocidade e faz uma pausa quando chega às lezírias do ribatejo, ao ponto de nem sabermos, junto ao Mar da Palha, encostado a Alverca, o que é que dali é rio e o que é que dali é mar. O Guadiana, no extremo sul, parece andar em biquinhos dos pés que mal damos por ele ao passar Vila Real de Santo António. Já o Douro, esse fluxo portentoso que tem a pujança da água bombeada de uma mangueira, segue sem medo de se dar à morte da foz. Sabemos como começa e como acaba. É abrupto. Como o norte.

 

Cruzeiro - Marco de Canavezes

Solar dos Mourões - Marco de Canavezes

 

Marco de Canaveses não tem nada de bucólico. Tem betão e prédios com mais de cinco andares. A artéria principal, que vem do vale até ao cimo do monte, está com obras em metade do seu percurso, numa requalificação urbana que não sei quanto mais tempo demorará a terminar. É como subir às nuvens, medir o corpo inteiro de uma cidade, e perceber depois que lhe estão a engendrar uma operação à coluna vertebral. Vê-se uma exibição de um rolo compressor a alisar o cimento e ouvem-se uma colecção de barulhos industriais de escavadeiras a bater na pedra e carregadeiras a pegar na terra. À volta estão praticamente todas as marcas de cadeias de hipermercados que passam em formato comercial na televisão. De histórico, no cume, pouco há para ver. Deram-me conversas de que o bonito em Marco de Canavezes não é o concelho, mas sim algumas das freguesias e outros marcos paisagísticos, quase sempre juntos ao rio Tâmega, que vai daqui para sul até dar um abraço ao Douro, ou à Serra do Marão, a tal para lá da qual mandam os que lá estão. As barragens que construíram por cá, uma no Douro e outra no Tâmega, transformaram zonas ribeirinhas em centros de desportos aquáticos e deram oportunidade para que se aproveitassem uns espaços sem uso em praias fluviais. Cheguei tarde, a uma hora da noite, e não consegui picar todas essas recomendações, sobretudo porque a rapidez com que teria de as ver faria de mim um estafeta e não um interessado. 

 

Casario - Marco de Canavezes

Câmara Municipal - Marco de Canavezes

 

Mas destaco a imponência branca da Igreja de Santa Maria, com pouco mais de quinze anos, projectada por Siza Vieira, muito estranha e abstracta na forma. Obra polémica à data da construção, pois claro, em que não devem ter faltado vozes populares a implicarem com o modelo aplicado e com os custos que devem ter assustado qualquer orçamento. Pelo que consegui falar com os locais, e seleccionei os mais velhos que têm maior tendência para a recusa da novidade, senti que apesar de tudo havia um orgulho bairrista marcoense em por cá terem um feito do Siza. Sendo honesto, nunca assimilei estas reformas que têm sido feitas para dar nova cara à arte sacra. Fogem-me do meu conservadorismo habitual, que se acostumou a ver a planta em cruz, com a nave e os assentos a fazerem as pernas, os coros à esquerda e à direita a darem os braços, e o altar a finalizar a parte da cabeça. Esta, vista de cima, tem também a forma de um corpo, mas sem membros e acéfalo, já que acaba no pescoço. A entrada é megalómana, faz uns cinco de mim, e pelo que percebi apenas se abre em ocasiões que o justifiquem. Tem escalas ambíguas, ora com essa portada que se não medir dez metros pouco lhe faltará, ora com outras, laterais, que não devem chegar aos dois e meio. Na parede do lado da estrada principal corre uma janela, que se alinha sem interrupções durante todo esse muro, dando-lhe uma luminosidade interior invulgar para um espaço que se quer recolher numa fé isolacionista. Tenho uma má relação com alguma arquitectura moderna porque não a consigo classificar na minha escala de gosto pessoal. Admiro a coragem de romper convenções e vincar novos padrões mas saí dali sem ter a mínima noção se achava ou não piada à extravagância pálida de tal objecto. 

Pela primeira vez desde a minha partida, e a fazer jus às forças urbanas de Marco de Canavezes, vou ao cinema. O novo Bond passa à meia-noite. Li boas críticas e ouvi ainda melhores opiniões. Tirando as do Público, para não variar, em que o Vasco Câmara continua a estourar uma e duas estrelas em quase tudo o que é filme. Nem sei o que é que o gajo vai lá fazer, sinceramente. Se não gosta de nada, fique então por casa a escrever, que eu já percebi que a coisa que mais o fascina é o aparato dos seus próprios textos.

 

Igreja de Santa Maria - Marco de Canavezes

Eu na portada da Igreja de Santa Maria - Marco de Canavezes

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por Ricardo Braz Frade às 20:23

Quarta-feira, 21.11.12

De Braga ao Porto

Putos num GoCar - Porto

Casas na Ribeira - Porto

 

Porto.

Levas-me a um céu em que os deuses são cabrões e desobedecem e dizem palavrões.

Dás-me o frio de um cubo de gelo nas costas de uma t-shirt e bombas-me de calor até explodir o coração. De emoção.

Talvez um dia se entenda o alvoroço desse teu licor de singeverga que me ateia até ao osso. Talvez um dia se descubra melhor mania catraia que o de fazer um brinde a ti desde as caves de Gaia.

Trazes-me a excitação de um miúdo a dormir mal numa véspera de Natal.
Quero-te comprar tudo. Quero-te comprar todo. Escrever-te má prosa e poesia rançosa. Cantar-te o Veloso no "A gente não lê" e ler-te de trás para a frente os versos do Tê. Começar-te na foz, e misturar o mar com minha a voz. Terminar-te na ribeira, e ver o Douro a desfazer-se ali à beira. Pulsar-te a noite, à noite, com álcool e sem norte. És tão curto e tão torto, meu Porto, e mesmo assim não te vejo o fim.

Transformas um gajo como não conseguem drogas pesadas com viço. Ainda hoje troquei os vês pelos bês e nem sequer dei por isso. Pões-me a rezar a santos da pesca do povo da Afurada. Que religião davas se te desses à maçada.

Como é que há peregrinos do norte a passarem aqui e seguirem para Fátima? Que crentes são estes que não crêem no que é belo?

Já eu não repouso sem te atar as pontas todas. Não me tapo sem te decorar os cantos e o mistério do que em ti não se vê, que tão depressa me faz esquecer o fêcêpê.

Que te trovem em sol maior numa fábula duriense que nenhum sonho teria mãos para desenhar.

Mereces um coro de falsetes e barítonos que do Douro te peça para namorar.

Sabes lá das saudades com que me deixas em casa.

Só não te digo perfeito porque perdias toda a graça.

E ver-te agora, a fazer-me a folha, de noite fechada, é ter a braseira da pele da mulher que amamos, à nossa encostada.

 

Gaia do Porto - Porto

Porto de Gaia - Gaia

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por Ricardo Braz Frade às 22:13

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