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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Terça-feira, 23.10.12

De Arraiolos a Estremoz

Paço Ducal - Évora Monte

 

Antes de mais, adianto que poderá haver uma ou outra falha na crónica de hoje - seja no texto ou nas fotos. Estou abrigado numa casa amiga por esta noite e o sinal existe, mas não é fabuloso. Ao que interessa, agora.

 

Évora Monte é tida como terra da paz porque selou o fim da guerra civil. As guerras civis acontecem obedecendo quase sempre à mesma lógica. Há um povo que se sente colonizado por outro e junta-se para expulsar aquele que considera ser o invasor. Depois de o conseguir, fica a pergunta, e agora que já somos livres e senhores de nós próprios, quem é que vai ficar à frente disto?. Como a pergunta tem resposta de escolha múltipla, a malta não chega a acordo e prefere resolver isto à antiga, como homens a sério. Olhem para Angola, por exemplo. Ou para a Irlanda, em que os tipos que lutaram pela independência da Grã-Bretanha, foram precisamente os mesmos que se viraram uns contra os outros na luta pelo poder interno. A nossa, contudo, não teve nada disto, porque não havia colonizador, sofrendo portanto uma espécie de desvio de personalidade sul-europeia. Tal como a origem de Portugal começou num miúdo que decidiu não obedecer à mãe, a origem da guerra civil começou por dois irmãos mimados - na altura chamavam-nos reis - se terem chateado. O primeiro, de nome Pedro, devia achar o país meio frescote e foi para o Brasil. O segundo, de nome Miguel, não se importou com o tempo frescote e resolveu ficar por cá. O problema é que o segundo prometeu uma coisa ao primeiro e foi mentiroso porque não cumpriu. O primeiro armou a bronca quando viu que o mano não era de palavra e resolveu dar uma folga aos brasileiros e voltar a Portugal para pedir satisfações. Como o Pedro era mais prá frentex, apelidaram-no de liberal. O Miguel, pelo contrário, tinha a mania que mandava mais que os outros, e chamaram-no de absolutista. A bulha dos amigos do Pedro contra os amigos do Miguel só terminou uns anos depois, aqui, em Évora Monte, a tal terra da paz que falei no início, com a rendição dos miguelistas.

 

Pormenor de fachada no Paço Ducal - Évora Monte

Vista do castelo - Évora Monte

 

No que toca à visita, mesmo que se venha sem a eloquente base histórica que tive o cuidado de assinalar acima, Évora Monte tem a individualidade de ter um castelo interior bem diferente do exterior, e é o de dentro que lhe dá o postal turístico, o Paço Ducal. Tem quatro torres, um em cada vértice do quadrado que forma. Esculpido ao longo das paredes está um ornamento que lembra as artimanhas manuelinas e o transforma numa espécie de presente de um magnata para outro: são cordas de pedra que, dando a volta ao castelo, se unem a meio de cada fachada num laço, ou num nó. Ainda intramuros está a Igreja Matriz, onde conheci uma senhora local, e quando digo local falo mesmo de quem vive no castelo, não dessa malandragem que saiu da muralha e foi viver para onde andam os restaurantes e os mercados.

- Há muita gente a viver aqui?

Ela pensou um bocadinho e disse que ainda havia alguma, sim. Pensei, por desconhecimento total, que alguma gente equivalia a uma centena, ou mais, se calhar. Percebi que não quando ela seguiu conversa:

- Olhe, ali naquela casa estão logo uns seis…

- Seis?

- Sim, só ali estão logo seis.

- Bem, mas seis não é muito.

- Sim, mas ao todo somos dezassete ou dezoito - e esbanjou um gesto de quem acha uma fartura.

Dezassete ou dezoito, sim senhor, está aqui um viveiro que se não se tem cuidado com a abundância ainda as muralhas vão abaixo do aperto.

- E há muitas pessoas que só vêm ao fim de semana.

- Pois, imagino - disse-lhe eu.

A pontuação da voz mostrava bem o orgulho que ela tinha na terra onde sempre viveu. Percebe-se. É olhar à volta: e percebe-se.

 

 

Dinis e eu - Évora Monte

Largo central - Estremoz

 

Em Estremoz aprendi sobre os bonecos em barro que lá se fazem. Investigações mais recentes descobriram que a origem delas está nas mulheres estremocenses, ditas bonequeiras, e não nos oleiros, como antes se pensava. Pegavam numa base de barro e acrescentavam-lhe um bloco do mesmo material em cima, que seria depois lapidado até formar o corpo que se pretendesse. Os membros e objectos eram feitos à parte e colados, barro com barro, à base que já estava feita. Os temas que os bonecos de Estremoz abordam são muitos e dão pano para mangas mas dos que vi, em exposição, a maioria reproduzia o trabalho de campo dos alentejanos, alguns deles com representações de profissões que já nem existem ou que foram mecanizadas. Quando o negócio começou a decair, as bonequeiras atiraram-se para os assobios, peças que contavam com um apito, também em barro, anexado, e habitualmente muito requisitados pelos gaiatos. Veio-me à memória um ou outro que tinha por casa.

A tradição esteve por um fio, e não fosse a iniciativa de certas pessoas que lhes achavam graça, morreria mesmo, algures no início do século passado. Acabou por se passar conhecimento, de uma mão para outra, e lá conseguiu resistir. Está exposta uma colecção no museu municipal. Dependendo do dia, paga-se zero para a ver. Toca a mexer.

 

Largo Central - Estremoz

Assobios - Estremoz

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por Ricardo Braz Frade às 22:50


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