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Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.
Igreja - Ilhas
A dois quilómetros de Arraiolos há uma aldeia modesta, sem cremes nem botox, chamada Ilhas. Segue o declive moderado do monte até ao vale, o Vale Bom, proveitoso em águas. É bom espreitar porque mantém a tradição campestre do alentejo, com as pregas à mostra e sem vergonha disso. A igreja não está num largo, a commumente chamada praça central das vilarejas portuguesas, mas sim meio perdida no final de uma estrada que termina a poucos passos da planície. Até lá há cafés, fechados, e homens de idade acompanhados de cães a dizerem-me adeus. Acredita-se que foi povoada por gentes das ilhas, no caso, dos Açores, daí o nome. É conhecida a colonização que o arquipélago açoriano teve, sendo uma quota-parte dela de origem alentejana. Aqui está uma retribuição, em jeito de karma, com os Açores a exportarem mercadoria humana para o continente.
Vinha - Monte da Ravasqueira
Um branco em preparação - Monte da Ravasqueira
Provavelmente à mesma distância mas para o lado de lá da vila, há o Monte da Ravasqueira, terra de vinha e de vinho. A estrada de terra batida não foi simpática para o Dinis mas a flanqueá-la um tipo entretém-se com a paisagem, numa lagoa avizinhada de sobreiros, verde como o alentejo normalmente não chega a ser, e marcada por desenhos geométricos da parra a pautar distâncias. A adega está no piso térreo, depois de descermos quase tudo. À medida que se alcança, vem o cheiro. É terra e é uva e é mosto e é fermento. Experimentei vinhos em catadupa. Eles, o Pedro e o Vasco, enólogos, bebiam e cuspiam; eu, Ricardo, consumidor, bebia e engolia. Gosto muito de cerveja mas à cerveja falta-lhe a liturgia. É muito toma-lá-dá-cá. O vinho não. Tem rito. É religião. Dá gosto ver os pormenores corporais, ritualísticos, que antecedem o beijo que damos a um tinto. Na cerveja não damos beijos, damos linguados. Só o vinho merece o chocho.
Julgar um vinho é tão válido para um ignorante como eu, como para o homem que o fez. E houve um deles que me ficou, mais do que os outros, bons também. A cor tinha sex appeal, e isto importa. Nunca vi nenhuma crítica de vinhos falar em luxúria e espero ser pioneiro: garanto-vos que aquele era erótico. Tinha uma cor que deslizava no vidro feita pele de modelo. Era um vinho para homens porque tinha a volúpia de uma mulher. Sai para o ano que vem. Posso dizer que vi o trailer e promete. A fixar.
Igreja de Santo António - Arraiolos
Castelo - Arraiolos
Arraiolos e tapetes. Cá está a causa-consequência. Visitei lojas, e na "Arte em Casa" fui especialmente bem tratado. Houve conversa para encher e depois fui onde queria:
- O negócio vai bem?
- Não me posso queixar.
Apresentou-me às tapeçarias maiores e completou:
- Já há pouca gente a comprar destes - deixou cair o braço direito e com o esquerdo apontou para o outro lado -, agora vão para tapetes mais pequenos, como estes, e para outros produtos que fui fazendo.
Olhei à volta. Ali estava um excelente exemplo de diversificação de produto que qualquer académico de gestão ouviu falar na universidade. Com o exigente ponto de Arraiolos, que obedece a determinada aritmética, começou a fabricar, com os mesmos novelos de lã coloridos e o mesmo tipo de bordado, pequenas amostras, quadros, sacos e até pufes. É de gabar quem usa a imaginação para adaptar uma tradição aos objectos de uso comum, trazendo-os para um contexto cultural facilmente reconhecível.
- E há cada vez mais turistas - acrescentou.
- Estrangeiros?
- Estrangeiros, sim, brasileiros. E portugueses. Agora com o preço das auto-estradas, muitos voltaram às estradas nacionais. Poupa-se dinheiro. Isso é que é preciso. Que voltem às nacionais para passarem por Arraiolos. Por mim que aumentem ainda mais as portagens.
É o lado de lá da crise, que tem benefícios mas que não fazem notícias de jornal.
Tapetes e pufes de Arraiolos - Arraiolos
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