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Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.
Rio Ardila - Moura
Igreja - Póvoa de São Miguel
Antes de começar o dia de hoje vou acabar o de ontem. Há um bar em Moura chamado Tarro. Grande, grande bar. O Tarro safar-se-ia bem em Lisboa. Vou mais longe, safar-se-ia bem em Barcelona, Madrid ou Milão. As bebidas são servidas com dedicação, como se fossem vinhos cosmopolitas para gente rica. As raparigas são giras, de cabelos escadeados, longos, muitas vezes a falarem entre si e de costas voltadas para os rapazes. E falam no gerúndio como boas filhas do alentejo. Tem fumo lá dentro, como deve ser, com vício. É tão bom que me senti mal a chamar por uma imperial e no segundo pedido fui ao gin. Bem malhado, em copo de balão, com tiras de casca de pepino quebradas a perfumar a orla, e a dar vegetal fresco à bebida. Os tectos caiados formam arcos em ogiva, não muito altos, o que é porreiro para nos sentirmos acolhidos. E o balcão, em madeira, como qualquer balcão deveria ser, a fazer com que um tipo se agarre a ele e não o queira largar. Quando fecha, o destino passa a ser um outro, escondido dentro das muralhas. Não é tão bom. Vale-lhe ser a única escolha a partir de certa hora. Nem lhe fixei o nome porque já tinha a memória toda ocupada com o Tarro. Arrisco dizer que aconselhável não é vir a Moura. Aconselhável é vir ao Tarro.
Eu e o Dinis - Aldeia da Estrela
Alqueva - Aldeia da Estrela
Fiz provavelmente um dos caminhos que mais regalo me trouxe aos olhos. Primeiro o rio Ardila, que atravessamos para ir para a Póvoa de São Miguel, azulado como raramente se vê um hoje em dia. Depois a Póvoa, terra modesta com povo afável e de boa conversa. A igreja é diferente, mesmo encaixando no padrão de cores das outras que tenho visto, conta com caixilhos alaranjados que lhe dão uma nova vibração. Daí, um senhor de boina apontou-me para uma outra aldeia, que ficava mais à frente. Vi-a, lá muito ao fundo, junto à barragem.
- É a Aldeia da Estrela. É muito pequenita, mas vá lá ver que vale a pena.
A Aldeia da Estrela só tem acesso por uma estrada. A que nos faz entrar nela é, por obrigação, a mesma que nos faz sair. Fica numa península que termina junto às águas do Alqueva. É bonita sem o saber, parece-me. Não se ouvem motores. Dispõe-se numa moldura humilde, alisada sobre a barragem. Nem se dá por ela, e isto é elogio. Há, no seu sopé, um corredor de plataformas flutuantes, que juntas descrevem um T, e de onde se pode ir ao mergulho. Estava frio e resolvi dar um mergulho, sim, mas só dos pés. Nem as infantis ondulações mostraram querer fazer barulho. Se há sítio em que dizer que o tempo pára faz realmente sentido e não é só poesia barata, pensem neste. Difícil é voltar à estrada depois do assento. Volta-se, sem grande vontade.
Mais tarde começa-se Mourão. Mais uma terra da raia, e como terra da raia, salta mais um castelo a fazer sombra à vila. Poderá fazer sentido pensarmos em Mourão como aumentativo de Moura, não em dimensão mas na imponência viril da parte amuralhada, que é longa, abarca a Igreja Matriz como sua, e, ao contrário da de Moura, esta não dá qualquer cavaco à povoação. Está lá para cima, altiva e apartada das pessoas. Em contraponto, lá para baixo é onde a vida se passa.
E ouvi cante. Por fim, foi preciso que o Sábado aparecesse, para ouvir as polifonias do alentejo. Foi na Adega Velha. Escutá-lo a sério, em concerto, com o grupo todo, torna a audição mais complexa. Aqui, infelizmente, eram só um par de homens a alternar vozes, às vezes com o senhor do balcão a juntar-se. Deu para matar a sede. Se formos pelo livro, pede-se que exista um ponto, o homem que entra primeiro, depois um alto, que continua o que o primeiro começou durante um curto período de tempo, e finalmente um coro, que repete os versos já entoados. O que é de notar é a pacatez solene que lhe é característica, que lembra as paisagens que rodeiam o povo que o canta. É tão precioso que ainda hoje se discute de onde saiu tal forma de arte popular. Não sei se se aguentará vivo num futuro próximo. O cante está ligado aos cantares de trabalho, sobretudo os agrícolas, que tendem a desaparecer, e pelo mesmo caminho vai o interesse das novas gerações por prolongar a tradição oral. Depois há esta nova moda de se ter promovido o Fado à canção portuguesa prima, da qual sou muito crítico, e que apaga o protagonismo de outros géneros, também eles exclusivamente portugueses. Há esforços para que o cante se torne património imaterial da humanidade. Pode ser que ajude.
Castelo - Mourão
Cante Alentejano na Adega Velha II - Mourão
E Monsaraz.
Monsaraz deve ter uma parte importantíssima na história de Portugal, tenho a certeza que sim, mas isso agora não interessa para nada. Com a premissa de que não lhe vou fazer justiça, aqui fica o que importa saber sobre a vila: é um disparate de beleza. É tão bela quanto o meu profundo lamento a quem ainda não a visitou. É tão bonita que deveriam arranjar maneira de conseguir que monsarazar fosse uma alternativa ao verbo embelezar. É tão feérica que me faz pensar por que raio andei a gastar dinheiro a ir passar férias fora quando a tinha aqui ao lado. Só deixa de ser estupidamente perfeita quando a noite cai porque deixamos de a ver com a clareza do dia, e mesmo assim ainda chega ao patamar de absurdamente perfeita. Não há uma pedra que lhe esteja a mais. E se por acaso se lembrarem de lhe tirar uma pedra do sítio atreve-se a ficar ainda mais deslumbrante.
A descrição peca por defeito.
É isto.
Fim de tarde - Monsaraz
Silhueta da vila - Monsaraz
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