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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Sexta-feira, 19.10.12

De Serpa a Moura

Alentejo a duas cores, na foto que mais trabalho me deu a tirar - Serpa

Calçada - Pias

 

Ontem não houve cante por isso guardo a minha crónica a esse respeito para outra altura, até porque nas noites de Sexta e Sábado ninguém liga ao que escrevo. Acabou por ser bom à mesma, quando fiquei a beber aguardente bagaceira, de mel e de medronho, já para lá da hora de fecho da casa. 

Nem Pias, onde estive de manhã, e que conta com vasta reputação de cante alentejano teve alguma música para me dar. 

- Vá ali àquela taberna. Pode ser que eles já tenham bebido um copo e comecem a cantar.

E fui. E nada. Nem beber, nem cantar. Vá lá que recebi um álbum do projecto Rastolhice, que conta com o Pedro Mestre na viola campaniça - para quem não sabe, é o cordofone alentejano por excelência -, e que muito gostei quando o pus hoje a rodar o cancioneiro tradicional do alentejo sobretudo da sua face mais a sul. 

Só quando cheguei a Moura é que vi que amanhã, isto é, quando já cá não estiver, haverá um concerto com o grupo de cantares local. Ando em desencontro.

 

Entre muralhas - Moura

Acesso ao castelo - Moura

 

Moura ergue-se numa lenda de amor. 

Conta a estória de uma princesa moura, claro, de nome Salúquia, e figura ao leme da cidade, numa altura em que a reconquista cristã vinha península abaixo. Conheceu um alcaide de Aroche, actual Espanha, também ele mouro, chamado Bráfama. Apaixonaram-se, ela por ele e ele por ela. E quiseram casar como ninguém antes se casava na alta: por amor. No dia anterior ao casamento, quando Bráfama decidiu pegar numa comitiva e ir ao encontro da princesa, acabou por cair numa cilada de dois irmãos cristãos, Álvaro Rodrigues e Pedro Rodrigues - os dois que, oficialmente, tomaram pela primeira vez o castelo de moura das mãos muçulmanas -, acabando derrotado e ele próprio morto. Os irmãos camuflaram-se nas roupas árabes para conseguirem entrar nas muralhas do forte da princesa, numa réplica do que foi o cavalo de Tróia há umas centenas de anos atrás. Lá chegaram e a princesa, julgando tratar-se do seu amado a chegar para a desposar, mandou desobstruir as portas. O castelo foi tomado e conta-se que a moura, ao ver que Bráfama tinha sido assassinado pelo exército cristão que a invadia naquele momento, se suicidou, atirando-se da janela da torre que encimava a cidade. Comovidos com o amor e a desgraça de Salúquia e Bráfama, diz-se que Álvaro e Pedro Rodrigues mudaram o nome do povoado, que no período árabe era Al-Manijah, para Terra da Moura Salúquia, transformando-se posteriormente em Terra da Moura, e finalmente, quase como alcunha, virou para a actual Moura.

As lendas de Portugal são quase todas de desfecho trágico. Muitas, quase todas as que conheço aliás, contam relações, encantos, mortes e lamentos de amor.

É curioso notar que o brasão de Moura, mais ou menos como o de Lisboa, borrifa-se nas convenções heráldicas e ilustra o momento chave do conto, sem fazer referência a mais nada: em baixo, a moura, estendida no chão, morta; em cima, o torreão, árabe e negro, da cor do luto, de onde a princesa se atirou para acabar com o desgosto. Ainda hoje podemos ver uma torre semi-destruída, de forma cilíndrica, a que chamam a Torre de Salúquia.

Estive lá.

 

Torre de Salúquia - Moura

Brasão de Moura

 

Além de partilharem uma ideia de mito no respectivo brasão, Moura e Lisboa têm outra coisa em comum: a mouraria. Cada uma à sua escala, mantêm uma intenção equivalente a ambos os casos. Aqui também se trasladou a comunidade árabe que por cá resolveu ficar, mesmo depois da conclusão definitiva da Reconquista. Disseram-me que havia um clima de tolerância entre uns e outros, mas que a existência de um bairro étnico imposto aos muçulmanos revelava, como é óbvio, um distanciamento entre os dois lados da vila. A zona da mouraria é interessante. As casas contam quase todas com poços, feitos no interior, no chão, que iam buscar água às profundezas onde a mão não chegava. Um deles, que a senhora que massacrei com perguntas revelou ser um dos mais trabalhados, está exposto. É o poço árabe, ainda na zona histórica. 

 

Vou beber um copo. É Sexta. Mesmo que seja em Moura, é Sexta.

 

Poço árabe - Moura

Dinis e torre do castelo ao fundo - Moura

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por Ricardo Braz Frade às 18:11


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