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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Quinta-feira, 18.10.12

De Mértola a Serpa

Complexo Mineiro - Minas de São Domingos

Casas de Mineiros - Minas de São Domingos

 

E choveu. Caiu água o caminho todo, da partida à chegada. Gosto deste tempo. Vou com ele, e não só para ficar no quentinho do sofá, como muitos pseudo-fãs da precipitação se estafam de dizer, enquanto subtilmente emproam o peito. Isto ou se é da chuva para tudo, ou não se é da chuva para nada. Gosto de andar à chuva. E isso é que é dar-lhe a devida atenção. Os outros gostam de se esconder dela, o que é bem diferente, ou antes, é quase um antónimo de mim. Seria o mesmo que dizerem que adoram uma mulher mas sobretudo quando ela está lá fora e vocês aconchegados em mantas. Não uso chapéu, nem casaco, nem cachecol, nem vulgaridades dessas. E de caminho, também não entendo quem pede sol eterno e se deleita caso o ano tenha trezentos e sessenta e cinco dias monocromáticos em que não há um centímetro no céu que mude de cor. Um ano sem chuva é tão mau quanto um ano sem sol. Está feita a minha declaração de intenções. Agora à viagem, às Minas de São Domingos.

Estão a cerca de vinte quilómetros de Mértola. Foram minas, de verdade, e andaram exploradas por ingleses, como proprietários, e portugueses, como mineiros, maioritariamente na extracção de cobre. À volta delas fixam-se as casas, as dos donos distintas das dos operários, numa separação de classes que levaria Marx ao suicídio. Umas, espaçosas e com jardins. Outras, em taipa, com pouco mais que chão e paredes. Perguntei a um velhinho onde ficavam os aposentos dos ingleses, que não consegui descobrir a uma primeira vista. 

- São ali para baixo e para a zona do hotel. 

O homem era mineiro. Viveu ali a vida inteira. Tinha uma rotina de duzentos metros diários, mal pagos, de casa até à mina e da mina até casa. Hoje a vila é um eco do passado. As moradias parecem ser de ninguém e o hotel fechou recentemente. Traz umas imagens de cidade fantasma em contexto pós-apocalíptico. Ainda se sente o minério, nas impressões de tinta que deixam as ruínas e as lagoas ácidas. E há uma praia, fluvial, até ela meio ao abandono. Engana, quando pensamos que aqui se viveu uma fase pioneira do período industrial, quando o frenesim dos comboios seguia até ao porto do Pomarão, ponto de partida para outros países, ditos desenvolvidos. As Minas de São Domingos existiram por obra de uma corporação, e por obra dela se extinguiram da mesma forma. A vida da vila, infelizmente, foi com ela para o caixão.

 

Lagoa - Minas de São Domingos

Dinis a fugir à chuva - Santa Iria

 

- A chuva é boa para o Alentejo - disse-me uma mulher antes de sair.

Ainda não parou. Em Serpa chovia tanto como em Mértola ou nas Minas. Chamam-lhe a terra forte. Forte como substantivo, dos muros fortificados que a guardam, e forte como adjectivo, presumo eu, do carácter das gentes que a vivem.

Dei de caras, sem o procurar, com o Museu do Relógio, numa casa privada de um amigo da minha família paterna, bem no centro histórico, protegida pelas muralhas de outro dos castelos da raia. Visitei-o pela segunda vez. Tem ainda mais peças do que antes. Dão-nos uma volta à história da relojoaria, essa profissão respeitosa que só poderia vir de gente organizada como a Suíça ou a Alemanha. Fascina-me este vago conceito de tempo e tenho uma admiração pessoal por quem o adora controlar, como essa malta germânica faz, sempre agarrada à importância da esquematização do calendário. Um museu deste tipo, único na península e que agora até se estende para Évora, em pleno Baixo-Alentejo, tem um sentido simbólico. Não há outra província no país que tenha tanto tempo. O alentejo profundo poderia alinhar linhas de montagem destinadas à produção de tempo e vendia-o à malta da europa setentrional que parece estar sempre com falta dele.

 

Aqueduto - Serpa

Muralha - Serpa

 

O que eu gostava de ouvir cante alentejano à distância de um braço. Estou numa taberna a ver uns velhotes alinhados a beber tinto e talvez ainda hoje lhes dê para isso, se o souberem fazer. Pode ser que sim. Quero falar desta arte, e vou falar, mas primeiro ando à pesca de uma gravação que ainda não consegui. Este poiso tem aspecto disso. Perguntei, durante a tarde, onde é que andavam as tabernas onde o povo cantava o trabalho.

- Já foram quase todas. Havia uma nesta rua. Acabaram com isso tudo.

Acho que ainda não, que ainda há quem escape à lógica da ditadura da higiene que as normas europeias nos vendem como necessárias para nosso próprio bem. Esta, por exemplo, tem todo o ar de quem guarda segredos da terra. À porta ouvi um bigodaças dizer que não se importava que aumentassem o preço do tabaco ou do vinho branco, desde que não aumentassem o do tinto. É aqui mesmo que vai ser o meu repasto, pensei eu. Fiquei imediatamente convencido depois de entrar, quando vi um homem de meia idade a bater o pé ao som do "Like a virgin" da Madonna, que passava numa televisão com o volume a bater ferros. Estou a olhar à volta e sim, pode ser que sim, que seja hoje que os ouço cantando

À calcetada Serpa, que tem tanta pedra por descobrir e destapar, acabo este copo que vem das Pias, aqui ao lado. Vou-me juntar à pandilha, com queijos e queijadas daqui. Talvez com cante mais tarde. Pode ser que sim.

 

Torre do Relógio - Serpa

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por Ricardo Braz Frade às 21:43


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