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Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.
Ponte sobre o Oeiras - Mértola
Castelo visto da vila - Mértola
O interior do Baixo-Alentejo repete o mesmo castanho seco por léguas. As vilas são poucas e distam-se bem umas das outras. Os esboços de movimento que vejo são de pássaros a abanarem as ramagens à beira do asfalto quando fogem ao ouvir o motor do Dinis. Acho que estive umas longas dezenas de minutos sem ver outro carro que não o meu, em estradas que lembram as americanas, estendem-se em rectas, sem direitas nem esquerdas, directas, sem ondulações. Quando em Almodôvar me disseram que Mértola era por aqui, sempre frente, não me enganaram numa vírgula. É mesmo sempre em frente. O volante fica a olhar para a paisagem, como eu. Dá vontade de o arrancar e pô-lo no lugar ao lado do meu para viajarmos os dois e conversarmos sobre mulheres. Não é bem entrar no cliché da paz do alentejo, mas a verdade é que ele sossega a irritação e amolece o mau génio.
O auge do dia foi a operação stop que apanhei. Dou muito valor à polícia que aqui manda parar automóveis de três em três horas, que é mais ou menos o período de tempo que leva entre um primeiro e um segundo carro lhes passarem à frente dos olhos. Havia um encostado à berma, presumo que por excesso de velocidade. É bem feito. Eu também podia andar aí a zapar com os cinquenta centímetros cúbicos do Dinis e só não o faço porque respeito o código. A mim, lá está, fizeram-me aquele gesto com a palma da mão, a dizer avance, avance, siga, siga.
Guadiana - Mértola
Porta interna na Igreja Matriz - Mértola
Mértola é um mole colossal num enclave estratégico entre a ribeira do Oeiras e o magnífico Guadiana. Quem vem de Almodôvar, a menos que se engane no caminho, entra pelo lado Oeste e apanha a ponte sobre o Oeiras, que se torna gigante com os pilares terminados e ligados em arcos perfeitos e que a levantam lá bem para cima do vale. No topo, como manda a lógica belicosa, o castelo. E a muralha daí sai para vir abraçar as casas brancas da vila que se vão atafulhando pela encosta abaixo até ao rio. Do cume de Mértola vemos tudo. Até a vertigem, aguçada pelos paredões não nos irem até ao corpo e se ficarem pela insegurança do joelho. Entre a vila e a fortificação está a Igreja Matriz, arabizante, para não dizer totalmente arábica. Nem sequer lhe temos de percorrer o comprimento, como é costume - a entrada dá praticamente para o altar, o que significa que num casamento a noiva não passa por aquele corredor da vaidade quando vai ter com o rapaz, isto é, a marcha nupcial dá o seu primeiro acorde e, tau, acabou, começa a missa.
Igreja Matriz - Mértola
Torre Oeste - Mértola
Não deixa de ter graça reparar que, quase sempre, os castelos do sul são de origem moura com adaptação posterior cristã, regra geral com uma estátua de um herói da Reconquista ou de um rei luso algures no perímetro da muralha. Aqui, pelo contrário, o castelo é de origem cristã e numa de simetria resolveram fazer uma estátua a um islâmita, Ibn Qasi, Senhor de Mértola. Era um sufi, palavra que, por estupidez, e mesmo sabendo o real significado dela, não consigo dissociar de surf. Dizerem-me que Ibn Qasi foi um grande sufista remete-me para as ondas do Oeste e eu bem tento apagar as imagens deste senhor com uma camisola de licra da Rip Curl mas não consigo. Eu sei que o sufismo não é para brincadeiras, que tem um caracter místico e pacifista sério e até respeito muito essa espiritualidade, mas não dá, as palavras homófonas ligam-me o interruptor da infantilidade.
Contudo, não me desligo da parte histórica. Ibn Qasi nasceu em Silves e pondera-se a hipótese de não ter sido exactamente um mouro mas sim um ibérico convertido ao islão. Não confundir isto com um moçárabe, que ainda hoje gera quilos de confusão na cabeça dos portugueses, e que se explica muito sucintamente como sendo um ibérico que se manteve cristão durante o domínio árabe embora adoptando um lifestyle que já ia beber consideravelmente aos hábitos muçulmanos. Continuando, Ibn Qasi formou a primeira aliança entre cristãos e muçulmanos na península, na altura com D. Afonso Henriques, e acabou assassinado onde nasceu, em Silves, por movimentos islâmitas radicais que viam nele uma ameaça à unificação do Al-Gharb contra o poderio da reconquista cristã. Foi um homem bom.
Ainda por cima sabia surfar.
Estátua a Ibn Qasi - Mértola
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