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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Segunda-feira, 15.10.12

De Silves a Loulé

 Pastor e aboio - Paderne

Ermida de Nossa Senhora do Pé da Cruz - Paderne

 

- Por favor, tem medronho?

- Tenho sim.

- E tem da casa?

Pausa.

- Da casa?

- Sim, se a casa faz algum medronho.

- Temos medronho de marca, se quiser.

- Sim, calculo que de marca tenha, qualquer café tem. Até em Valença do Minho deve haver medronho de marca. Perguntei se tem da casa. De algum alambique que tenha para aí escondido.

Pausa.

- Temos de marca.

- Não tem mesmo nada da casa? Eu prefiro beber a da casa, sinceramente.

Pausa.

- Deixe-me ver o que é que tenho.

Pausa.

Vai ao balão e volta passado uns segundos.

- Sabe que nós não podemos vender nada da casa, não sabe? Principalmente aguardente.

- Sei muito bem. Daí ter perguntado. Não se preocupe que se me apanharem com aguardente caseira eu digo que a roubei.

Pausa.

- Vou ver o que consigo arranjar.

Torna ao balcão e regressa passado uns segundos com a mão atrás das costas.

- Aqui está - e mostra-me uma garrafa com um rótulo disfarçado.

- É mesmo dessa então.

- É feita com medronhos de Messines - disse-me baixinho, e serviu-me enquanto escondia o orgulho suspeito de quem a fez.

Era transparente como é normalmente. Mas tinha mais fruto. Já bebi aguardentes de medronho que parecem álcool etílico com um ligeiríssimo travo ao fruto. Esta não. Era tão boa que saquei de um papel, pedi uma caneta, e comecei a pôr em palavras o que me ficava na boca. Já vinha de trás, a ligeira bebedeira, com o vinho algarvio ao jantar, tinto, que é uma pomada. Tem mais peso, tem mais cor e tem mais álcool. O remate da aguardente põe a cabeça a emolir, zonza. No quarto, uma meia hora depois, o sono tornou-se fácil. O espaço de tempo que vai de uma pessoa puxar os lençóis para baixo e se deitar, é para adormecer.

 

Fonte - Loulé

Mercado - Loulé

 

Passei em Algoz, Tunes, Paderne, Boliqueime e finalmente Loulé, de onde escrevo. Em Paderne, parei. Ainda dá uns mergulhos na ruralidade, e por muito contestada que a palavra seja, acho que continua a existir um sentido claro ao usá-la, sobretudo aqui, naquele que se manteve durante dezenas de anos como o último país rural da europa ocidental. A maioria não sabe, mas já viu um pedaço de Paderne ilustrado. Quando se olha para a bandeira da república portuguesa e se presta atenção aos sete castelos que contornam o escudo central, um deles é este, encostado ao cerro de Paderna que está na origem do seu nome, agora meio abandonado depois da vila se ter deslocado dois quilómetros para norte. Pelo que li tem havido uma ou outra restauração mas ninguém diria. Está vazio, e não só de pessoas. 

Até lá há uma estrada que alterna ente o alcatrão e a terra batida de pedregulhos brancos onde tive o prazer de conhecer um pastor, algarvio de gema, segundo o próprio, a cantar os seus aboios. O aboio é uma estranha verbalização do pastor com o gado com quem vive e trabalha, normalmente recorrendo a interjeições como ou ou ,  e quando ouvido apercebemo-nos que tem uma cadência especial, com altos e baixos de voz repentinos e que as ovelhas e os bois e as cabras respeitam em hipnose. 

 

Um beijo - Loulé

Castelo - Loulé

 

Loulé foi uma surpresa. Vinha passar muitas férias aqui perto, e flanqueei-a tantas vezes que é com alguma vergonha que digo que não tinha qualquer ideia de ela poder ser tão interessante como a achei hoje. Tem minúcias que a retiram do contexto algarvio, como o castelo, em que em vez de taipa, material muito visto cá e no norte de África, é usada pedra. É assim também a torre da igreja matriz, que lembra a rusticidade do nosso norte. O mercado, quadrangular, já entra na arquitectura árabe, ou antes neo-árabe porque é de construção moderna, e lá está a lua, símbolo que os muçulmanos não se cansam de usar, a dar um topping aos torreões . A curiosa adaptação urbana do antigo portal do Convento da Graça, ladeado por casas onde se podem observar, a dois metros de distância do monumento, calças de pijama agarradas a um estendal, numa excelente fotografia de como o século XIII se dá bem ao lado do XXI. Um museu dos frutos secos e dos seus ciclos de produção e uma casa com exposição da obra de Duarte Pacheco, o ministro rebelde do Estado Novo que morreu de acidente de carro numa altura em que ninguém morria de acidente de carro. E, guardando o melhor para o fim, Loulé dá-nos a Ermida da Nossa Senhora da Conceição, um regalo para os olhos num espaço que não deverá ter mais do que quinze metros quadrados. A Ermida, cuja fachada se veste de pedra como que a fazer panelinha com o castelo e a Igreja Matriz, está revestida em azulejos que contam a história de Nossa Senhora com uns pormenores caricatos como transformarem um dos Reis Magos num índio, parece que homenageando o Brasil, a terra do ouro, ou, ainda mais singular, a ilustração da circuncisão de Jesus Cristo. Nesta não me consegui calar e falei com a senhora que guardava a portada:

- Desculpe lá, este bebé é suposto ser Jesus Cristo?

- É, sim. Deve estar a pensar por que razão temos um padrão de azulejos a retratar a circuncisão.

- Sim, estou. Isto não gerou polémica? Nunca tinha visto nenhuma.

- Pois, eu sinceramente também não - e atirou uma resposta prática -, mas não vejo por que se deve esconder, ele era judeu, e sendo judeu com certeza que tal aconteceu.

Bem visto. 

Foi Loulé.

 

Portal do Convento da Graça - Loulé


Ermida da Nossa Senhora da Conceição - Loulé

Igreja Matriz - Loulé

 

Permitam-me esta nota. Estou muito grato aos Bombeiros de Portugal que me têm dado, quase sempre, espaço para dormir. Desta vez, contudo, acho que devo abrir uma excepção e agradecer particularmente ao Corpo de Bombeiros de Loulé pela hospitalidade e pelo tempo dedicado à minha estadia. São ocasiões deste tipo que nos põem acima de qualquer desgosto económico que possamos viver. Desejo-lhes a maior sorte para os próximos anos porque a deles é a minha também. Um forte abraço, e que ele dure até ao meu regresso.

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por Ricardo Braz Frade às 19:37


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