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Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.
Anoitecer na Praia da Rocha - Portimão
Vista da vila - Estômbar
Estas são as aldeias, as vilas e as cidades que foram o Al-Gharb, aquilo a que os mouros chamavam de ocidente. Não é preciso deixar a cabeça especular para reconhecer o norte de África nas ruas que se enredam sinuosas à volta dos bairros históricos. Portimão tem umas ideias de uma Argel que eu nunca visitei mas que já provei em fotos e filmes. É desengonçada, suja quanto baste, quente no ar e nas cores, meio estreita e confusa, um pouco como a Alfama e a Mouraria com que os lisboetas nasceram. À volta há mais disto em escalar menor. Veja-se Estômbar, moura até ao osso, que faz duvidar se estamos do lado de cá ou do lado de lá do mediterrâneo. São terras menos bonitas que Lagos e, por isso, com um grau de portugalidade acima do que é normal no algarve bife - o Allgarve publicitário -, e isso é palpável na umbilical relação que ainda mantêm com sectores elementares como a pesca. As excepções à regra são as praias, dando o bom exemplo da Praia da Rocha, espécie de anexo balnear à cidade de Portimão, onde o turismo volta a triunfar. Acrescente-se que é uma excelente praia, longa, com um areal admirável, atestada com cafés e restaurantes de todo o tipo que avivam a marginal com néons berrantes. Só em bares irlandeses, a Praia da Rocha deve contar menos dois ou três que Dublin e mais uns quatro ou cinco que Galway. Fora os outros e o do Zezé. A maioria dos portugueses que vêm cá beber um copo fazem-no porque as inglesas vêm cá beber um copo. É um ponto de encontro étnico sem ser preciso estar a perder tempo com combinações e mensagens e horas e esses pressupostos todos.
Ponte Romana - Silves
Torre - Silves
As manhãs na Praia da Rocha começam menos cedo porque as noites vão até mais tarde. Só cumprimentei o Dinis por volta do meio-dia.
Fugindo a Lagoa e subindo um pouco em direcção à serra, atravessando pomares de laranjeiras e limoeiros, aparece então Silves. Faz-se valer de ser a antiga capital dos algarves, e faz bem porque se topa a milhas. Foi só depois da natureza lhe trocar as voltas, primeiro quando o rio Arade ganhou areia em vez de água, segundo quando o terramoto de 1755, um assassino da costa algarvia, deu o golpe de misericórdia no que restava, que os silvenses resolveram procurar outros poisos, e a maioria deles terminou em Faro, actual cidade máxima da antiga província, e, coitada, bem mais feiinha. O castelo sobressai, com uma longa muralha que o arenito transforma em paredes avermelhadas, de tons ferrugentos e metálicos. Impõe-se. É impossível olhar para Silves e não o ver. A ele e à Sé, também ela a mostrar-se num invulgar encarnado que choca bem com a parte caiada. D. Sancho I terá sido quem primeiro investiu, a aproveitar uma boleia de uma horda de cruzados que chegou à península, segundo se consta, por engano. É por cá homenageado, com estátua bélica à entrada, de corpo inteiro, direi que um pouco acima da sua real envergadura. Como quase todos os morros amuralhados do Algarve e de parte do Alentejo, andaram de mão em mão, ora para o lado cristão, ora para o árabe, durante anos e anos a jogarem para o empate até ao tira-teimas final que concluiu a reconquista íntegra da ibéria pondo um termo ao Al-Andaluz.
As intermitências que existem em relação aos ocupantes das cidades meridionais de Portugal deixam normalmente um rasto mítico que perdura através do povo. Silves, como cidade milenar, tem um baú cheio de lendas relacionadas tanto com mouras propriamente ditas, ou seja, mulheres árabes, como com as outras mouras, as moiras encantadas, como são conhecidas no folclore nacional, que estão além de qualquer referência histórica, mas que por várias razões acabaram por ser confundidas, ou se calhar fundidas, com as primeiras. Vou passar para o outro lado do espelho: conta-se que aqui, à meia-noite do dia de São João - e só neste pedaço já se consegue vislumbrar um resquício da dedicação popular ao solstício do Verão -, uma bela moura encantada é vista a cantar na cisterna do castelo, a navegar numa barca de prata com remos de ouro, e espera um desencanto vindo de um príncipe que partilhe a sua fé.
Na essência, apesar da invocação da religião quando se aborda a fé, a lenda fala de uma moira encantada, ser fantástico como os gnomos o são na tradição germânica. Estes espíritos que habitam o saber do povo, o folc e o lore, são comuns a todo o território português e ainda à Galiza e às Astúrias - zonas onde a influência árabe foi nula ou quase nula, o que comprova que a relação deles com o período da Reconquista se tratou de um repintura da coisa. Estas ninfas vivem normalmente num aprisionamento que espera um feitiço que o quebre, como aqui acontece. Não raras vezes, sempre que aparecem, estão a cantar, como aqui também acontece. E surgem habitualmente junto a fontes ou passagens de água, como aqui novamente acontece, no caso, numa cisterna. Não me parece injustificado dizer que a lenda da moira de Silves é muito anterior, portanto, à chegada dos mouros à península, e que vem de um passado demasiado remoto para estar aqui a escrever e inventar datas.
São mistérios que se irão repetir ao longo da viagem. Falarei mais deles em altura e sede própria.
Estátua de D Sancho I - Silves
Ruela - Silves
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