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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Sábado, 13.10.12

De Lagos a Portimão

Casa dos Escravos - Lagos

 

Os miúdos e os pais anglo-saxónicos ficam na praça a ouvir música ao vivo até o vinho lhes dar sono e os filhos adolescentes acima dos dezasseis aceleram as garfadas do jantar para poderem sair e beber e galantear. Este é o comportamento padrão em Lagos e noutras cidades do centro algarvio. Da meia-noite para cima o espectáculo fica para maiores de dezoito. São putos a jogar ao copo e à moeda a ver quem se enfrasca mais rápido, marmelanços que se borrifam em moralismos no meio das pistas e raparigas com cara de anjo a espraiarem a bebedeira na calçada portuguesa. Não estou a fazer qualquer juízo de valor. Isto é um relato e quero que se mantenha por aí. Até porque seria cínico o suficiente condenar coisas pelas quais passei. Antes, aqui não muito longe, em terras de Tavira, aceitava desafios piores. Até aos vinte e picos há um direito que nos assiste, que é o de ser irresponsável e parvo e malcriado. Em Lagos vi muito galfarro parvo e irresponsável e malcriado e em vez de reagir deu-me um ataque de saudade. Parte de mim quis ir ter com eles e perguntar se podia brincar também. Só não fui com medo da tampa. Qualquer um deles há-de sobreviver a esta fase. O que vai acontecer é que vão arranjar trabalho ou uma mulher ou ambos e passam a atinar. Eu deixei de ser idiota, inicialmente, por causa de uma mulher. Depois o trabalho deu a cacetada final e entrei na normalidade dos vintes. Quando ambos terminaram ainda pensei voltar à imbecilidade outra vez mas fui lesto a perceber que já não tinha idade para isso.

 

Igreja de Santo António - Lagos


Ruela - Lagos

 

Acabei por ficar a falar com um casal de americanos de Pittsburgh. Ele era baterista e ela adorava Springsteen e The Hold Steady de forma que não houve forma de me ir embora. Conversámos de outra malta ali da zona de Nova Iorque que sabe fazer rock n' roll como deve ser feito, sem serem precisos toques de calcanhar. Insistimos que as canções são importantes mas que as letras não lhes ficam atrás e admiti que o que me levou a gostar Springsteen e de Hold Steady, antes das guitarras, foram os versos. Os Hold Steady, aliás, têm uma canção que bem se enquadrava no que vi e ouvi em Lagos. Primeiro, é escrita em inglês, a língua que mais ouvi por lá - a alemã vem a seguir, e, possivelmente, uma tal de língua portuguesa fica na terceira posição. Segundo, representa muitos dos beijos que tive o prazer de presenciar a poucos metros de distância. Canta-se assim, só com viola a acompanhar: lost in smog and love and faithless fear, I've had kisses that make Judas seemed sincere. E é verdade. Os engates no algarve não têm grande honestidade. É mais a conveniência a dar cartas. E calor, também há muito de calor. Raramente um grande amor nasce algarvio. O que pode acontecer é que um grande amor termine algarvio. Conheço uns poucos.

 

Conserveira - Portimão


Igreja Matriz - Portimão

 

Voltei à hospedaria já de madrugada e lá estava o indiano que me calhou na rifa a dormir no beliche ao lado do meu. Tinha uma posição estranha. Dormia de barriga para cima, pose que me faz logo confusão, e as pernas encolhidas em forma de v invertido, como se não tivesse espaço para as esticar. Ainda me lembro de ter pensado, antes de fechar as pestanas, amanhã tenho de perguntar a este tipo se na India todos dormem assim. Infelizmente o rapaz é matinal e quando acordei já lá não estava ele mas sim um Australiano cinquentão que me disse ser socialista antes de se lembrar de me dar o bom dia. Este efeito surpresa dos albergues devia ter uma taxa de entretenimento, e eu estaria disposto a pagá-la. Como é que as camaratas são mais baratas que os quartos individuais, não sei. Duvido que obedeça a uma lógica de mercado. O australiano ganhou balanço e aproveitou a casa de escravos de Lagos para mais umas incursões políticas. A casa de escravos é uma mancha histórica que obviamente não deve nem pode ser apagada a borracha ou lavada com lixívia, e é evidente que deve estar bem destacada como mau exemplo no coração do turismo da cidade. E está. Para não esquecer.

 

Portimão está mesmo aqui à beira. A um salto.

 

Praia da Rocha - Portimão

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por Ricardo Braz Frade às 19:44


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