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Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.
Avestruz - São Torpes
Voltei a chegar com o pé ao mar. Não é pêra doce, para quem vem de Santiago do Cacém e se quer meter junto à linha da costa, a caminho de Sines. Das dezenas de pessoas a quem perguntei, todas, sem excepção, me apontaram para a auto-estrada.
- Pois, mas eu pela auto-estrada não posso ir - e apontava para o Dinis -, ele é potente mas não tanto.
Houve um velho na bomba de gasolina de Santiago do Cacém que atirou para o ar, farto das minhas explicações:
- Vá lá pela auto-estrada que ninguém lhe diz nada, pá.
Um amigo desse, mesmo ao lado, enfatizou:
- Aquilo ainda nem sequer é considerado auto-estrada, homem.
- Mas não há outro caminho?
- Não sei, toda a gente faz esse - mandou o primeiro, com ar de quem não quer falar mais.
- É, toda a gente faz esse, ninguém se mete consigo se for por aí - mandou o segundo, também com ar de quem não quer falar mais.
Acreditei. Quando há quorum, um tipo tem de acreditar. Enquanto me guiava até lá, fiquei a pensar nessa. Uma auto-estrada que ainda está para ser, ora aí está uma peça que me faltava nos textos da viagem. Foram cerca de cinco quilómetros e lá cheguei, com a sinalética a azul bem explícita do lado direito: auto-estrada. Cá está. A auto-estrada que ainda está para ser, é uma auto-estrada. Dei meia volta ao Dinis e uma volta completa aos insultos, até um parque de estacionamento ali bem perto. Tinha um senhor a guardar a cancela, com aquelas camisas com riscas verticais e gravata com riscas diagonais. Perguntei novamente:
- Boa tarde, sabe como é que posso ir para Sines sem ser por aqui? É que por aqui não posso.
Ele levantou-se da cadeira, olhou para baixo, fez um exame de cinco segundos ao carro como se isso importasse, tornou a levantar os olhos para mim, e devolveu:
- Vá pela auto-estrada que ninguém lhe faz nada.
Sacanas dos homens pareciam feitos uns com os outros. Eu não consigo não gostar deste portuguesismo de se dizer é proibido mas faça que ninguém lhe diz nada. Há coisas que só são ilegais por questões formais, ou seja, se as fizer de forma informal, isto é, marimbando-me na lei porque a lei neste caso não faz sentido, a polícia fecha os olhos, numa de eu sei que estás a fazer mal, mas estás a fazer mal com muita pinta, por isso vá, avança.
Praia - Porto Covo
Rua dos restaurantes - Porto Covo
Cais - Porto Covo
E avancei, auto-estrada adentro. Nunca, num sítio destes, pensei ter de prestar atenção ao sinal de velocidade mínima. Hoje prestei. Durante doze anos atravessei o país de um lado a outro comigo a dizer para mim mesmo, olha os 120 pá, não te estiques para lá dos 120, Ricardo, que eles andam aí que nem falcões para te apanhar. Durante meia hora da minha vida, posso dizer que o raciocínio foi feito do avesso, olha os 50 pá, vê lá se esticas isto até aos 50, Ricardo, que eles andam aí que nem falcões para te apanhar. Não me apanharam. Ou se calhar sim, mas não disseram nada. E Sines apareceu, com a praia a resguardar a parte antiga e o lado sul, quando seguimos para Porto Covo, a apresentar uma pequena civilização industrial ao Atlântico. Sines é gira se nos concentrarmos só na cara, porque somando o resto do corpo a pintura perde valor. A parte boa está no porvir, a dos trilhos que gravitam ligeiramente acima da linha do mar, costa abaixo, nas dunas das praias que deveriam fazer inveja às dos outros, dos que estão fora, mas que não fazem por terem demasiado nível para pequenezas dessa índole.
Sou um tipo do Inverno, que continua a preferir uma leitura à lareira do que um jornal à beira mar. E se calhar é por isso que me torno insuspeito quando afirmo, em sublinhado grosso, que a fronteira vicentina, a que separa Portugal do seu mar, é uma colectânea de pérolas, a maior parte delas quase sem mexerico humano a borrar a tela, e a encherem-nos o tronco de sal e vida. Aqui, parar e olhar é viajar.
Ilha do Pessegueiro - Praia da Ilha
Entrada do Forte da Nossa Senhora da Queimada - Praia da Ilha
Até Milfontes - Praia da Ilha
E há Porto Covo, claro. A terra que apenas uma franjinha de Portugal conhecia até o Tê a pôr em poema e o Veloso a cantar. Numa pernada ainda se alcança a Ilha do Pessegueiro, também personagem da canção, com o arenito a desenhar-lhe uma forma vagamente similar à de um casco de barco de pesca. São dois relevos de casas a registar que há cá gente, mas pouca. Este cenário maior que tudo repete-se até Vila Nova de Milfontes, que estanca no rio Mira. A melhor forma de passar o tempo em Milfontes é a deixar o relógio bater horas sem fazer nada. Esperem e vão conhecer o milagre que é o cair da noite. O sol põe-se onde deve, no Oceano, onde com jeito e boa audição o ouvimos dizer adeus. A luz também se esfria onde deve, no Oceano, até ficar naquele tom lilás que dá vontade de começar a namorar. Entre as sete e meia e as oito e meia não dá para não olhar a perfeição que pode ser o fim de um dia. Não é preciso ser religioso para acreditar que o Deus do mar está a adormecer à nossa frente. Aguentem até ficar escuro e só se voltar a ver luz nas nossas costas, nos candeeiros de rua da vila. Aí sim, só mesmo aí, é tempo de ir ao vinho branco. É para lá, agora. Até amanhã.
Quase à noite - Vila Nova de Milfontes
À noite - Vila Nova de Milfontes
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