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Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.
De longe, a distância diária mais longa que percorri. Foram oitenta quilómetros onde o Dinis, num desvario, conseguiu pela primeira vez ultrapassar outro veículo em andamento. Fiz um desvio relativamente grande para passar por duas aldeias que me aguçam a curiosidade há já uns tempos. Ficam próximas. Uma é São Romão, e a outra, mais inacessível, é Rio de Moinhos. Falam-se delas muito de vez em quando, em alguns livros etnográficos, e em escassas reportagens televisivas. São conhecidas por abrigarem os ditos mestiços do Sado, principalmente a primeira. Vem de trás, da altura em que alguns escravos negros chegaram ao porto de Lisboa e de Lagos. Alguns deles, diz-se que por serem resistentes ao paludismo, doença endémica e associada aos campos de arroz e às salinas, foram destacados e comprados para laborarem por aí, substituindo em muitos casos os locais. Houve misturas entre uns e outros, e o produto delas fixou-se sobretudo nestes dois sítios.
Sobre este assunto há uma pitoresca canção que muitos se deverão lembrar chamada "As meninas da Ribeira do Sado", dos alentejanos Adiafa. Versava assim: "as meninas da Ribeira do Sado é que é / lavram a terra c'as unhas dos pés / as meninas da Ribeira do Sado sã com'ás ovelhas / têm carrapatos atrás das orelhas". A música, que para mim até nem é das melhores que têm na manga, dava um piscar de olho às moçoilas daqui da zona, as tais mestiças do sado, que, entre outras coisas, contam com os carrapatos atrás das orelhas. O cancioneiro português pode dar aulas de etnografia, e aqui, como se pode ver, dá.
É fácil, em São Romão, reconhecer um fenótipo diferente nestas gentes. A primeira senhora que me apareceu tinha uma pele claramente mais escura - passe o paradoxo -, em comparação com o que habitualmente vemos no alentejo. É, com enorme probabilidade, descendente recente e directa da África subsaariana que se instalou nestas margens. Mais tarde apareceu um homem, encorpado, onde também reconhecíamos esses traços que o ligam a um antepassado relativamente próximo. Qualquer um deles, à primeira vista e sem ter referências geográficas a filtrar informação, passaria por, por exemplo, Cabo-Verdiano. Os donos de um café já fechado - assaltado há um ano, onde levaram tudo excepto a televisão, e só porque era daquelas antigas, está a ver menino?, daquelas com o rabo de fora… -, por outro lado, pouco ou nada tinham dessa história. Em Rio de Moinhos esta realidade deixa de ser tão evidente. Se é por a mistura ser menor, não sei.
Infelizmente apenas o proprietário do antigo café quis tirar uma fotografia comigo. Um homem simpático, que me falou da aldeia e das suas raízes. Era baixo. Eu, que estou longe de ter de olhar as pessoas de cima para baixo, tive mesmo de o fazer. Senti-me o Gandalf a chegar ao Shire.
Santiago do Cacém ainda ia longe. Depois de São Romão havia Grândola, vila que mal me conhecia e que continua sem o prazer de me conhecer grande coisa. Entre ver à pressa ou não ver de todo, pouco ou nada vai. E decidi precipitar-me para acelerar a viagem. A torre de água, mesmo assim, é bonita, mais bonita que qualquer uma por que tenha passado. Fizeram dela uma espécie de fonte, em cascata. Aí perto, está a igreja matriz e a praça da freguesia, que um olhar rápido grava como engraçadas. Deu para assinar o meu nome a caneta de filtro na parede da bomba de gasolina - porque eles assim o pediram, não sou nenhum vândalo -, por isso se algum leitor lá parar nos próximos dias que me informe se eles o apagaram imediatamente ou não. Cheira-me que sim. Grândola ficou para trás. Fui breve. O Zeca que me perdoe.
Tive, até Santiago, trinta quilómetros de sol a tostar-me a cara, que já vai bem morena, acrescente-se. Até hoje, por vício de Lisboeta ou de família que viveu a norte dela e não a sul, sempre que dizia Santiago referia-me à outra, à da Galiza, de Compostela. Essa era a Santiago standard. Do Tejo para baixo, já deu para ver, Santiago é esta, a do Cacém. Estão ligadas. A ordem de Santiago é uma espécie de carimbo do litoral alentejano, sobretudo neste encadeamento que vai de Setúbal, a Alcácer do Sal, a Santiago do Cacém e a Silves. É espetar os olhos nos brasões, que eles falam. A cruz de Santiago está em todos, destas e de outras cidades circundantes que se queiram investigar. Falando numa linguagem microeconómica, o que aconteceu é que D. Afonso Henriques fez uma espécie de franchising da Ordem de Santiago cá em Portugal para cair nas boas graças de algumas pessoas com importância. A Ordem, desde aí, dominou esta pequena faixa ocidental e povoou-a com os seus símbolos.
À semelhança de Coruche e de Alcácer, é encimada por um castelo ou fortificação. De lá, como é hábito, a vista não tem fim e neste caso, se ficarmos naquela pose de ballet chamada biquinhos dos pés, até chega ao mar. E depois existe essa maravilha no meio do mato que é a Capela de São Pedro, com quinhentos anos mas ar de gaiata, e eu a dizer-lhe que bastava ela para me convencer a voltar.
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