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Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.
Dinis até Monsanto - São Pedro de Vir-a-Corça
Junto à Capela - São Pedro de Vir-a-Corça
Foi na Casa de Nossa Senhora do Incenso que adormeci. Na entrada, aquecem uma braseira numa mesa redonda antes de nos irmos deitar, para fazermos sala com eles. Conversa-se bem. Dorme-se melhor. É uma casa de família que arrenda quartos. E tem bolachas caseiras à hora do pequeno almoço. E faz compotas de fruta e legumes: de cereja, de amora, de ameixa, de figo, de morango, de tomate, de uva. As que provei, valiam a estadia. Falou-se da terra, da terra mesmo, a que dá sustento. Devia ser mais tema de mesa, a terra. Na cidade falo do que comprei, assunto interessante e mais que válido, mas recorrente. Gostava de poder dizer mais sobre uma coisa que tinha plantado e visto crescer. Qualquer coisa que me tirasse da relação monossilábica que tenho com um supermercado. Eles falaram disso, da apanha da azeitona, dos olivais e das hortas, e de como um país que não planta não colhe.
Saí da casa com v de volta. De novo à estrada que fiz ontem. Para sul.
Eu e a Gruta do Amador - São Pedro de Vir-a-Corça
Ponto de oração - Relva
Até ao Monte Santo. Até Monsanto.
Antes de lhe ir ao osso, a chamada Vila, é obrigatório virar para Vir-a-Corça. Monsanto não é um, são vários. Tem aglomerações. Vir-a-Corça é uma delas, no sopé da elevação granítica. O nome encanta - vir a corça.
Vou-me à lenda que lhe deu o nome. Houve uma matrona que, vendo-se aflita pelas dores do parto, se esqueceu dos seus deveres de católica, proferindo uma praga que apelava aos demónios para levarem o feto assim que ele saísse à luz. Assim aconteceu e o bebé foi carregado por seres demoníacos mal nasceu. O ermitão que cuidava do parto, Amador de nome, fez aí uma oração a São Pedro para que ele intercedesse e lhe devolvesse a inocente criança recém-nascida. São Pedro fê-lo. O ermitão Amador, contudo, depois de receber a criança, não tinha meios para a sustentar. Apareceu então uma corça que benevolamente ofereceu os seus peitos para lhe dar o leite da sobrevivência, duas vezes por dia, pela manhã e pela tarde. Ambos cresceram e morreram aqui, onde o monte começa a formar planície. Passámos então a chamar este espaço São Pedro de Vir-a-Corça. Um lugar santo, realmente, a deixar mais perguntas que respostas. As lajes que se encontram na Capela, no entender popular, são as de Amador e do bebé que foi salvo, já crescido. Ainda hoje alguns agricultores retiram terra da campa correspondente à do ermitão porque acreditam ser eficaz contra o pulgão das searas.
É pertinente fazer notar que, tal como o javali, a corça sempre foi um animal adorado por tribos lusitanas. Era, por assim dizer, uma metamorfose dos Deuses - Sertório caiu nas boas graças lusas por fingir que uma corça lhe dizia segredos. Não deixa de ser interessante, como tal, ver que é uma corça que aqui faz o milagre. Se já vem de tão tão longe, é especulação, mas também é disso que vivem os mitos.
E volta-se a subir.
Até ao Monte.
Até ao Monte Santo.
Até Monsanto.
Largo da igreja - Monsanto
No topo de vila - Monsanto
Depois, subindo, passando Relva, e chegando à vila, lá vem ele, embrulhado em rocha e despido de ornamento. Monsanto escreve-se na pedra, no sentido literal. É fácil imaginá-lo, a crescer, se pegarem em areia molhada do mar da praia e a deixarem escorrer entre os dedos, montando uma cidade improvisada de pequenos blocos, uns em cima dos outros. Monsanto é isso, em granito. Parece estar tão encavalitado sobre e sob si próprio que se um Deus qualquer lhe tirar uma pedra ao acaso ele desmorona-se, em dominó, encosta abaixo. É difícil dizer se foi a pedra a fazê-lo conhecido ou se foi ele que deu fama à pedra. É difícil, aliás, dizer o que seja. Se se procura química entre o homem e a natureza o melhor é estacionar. Procurar mais estradas é só perder tempo. As casas não são casas, pelo menos não no sentido que os mortais lhes dão. São fendas cavadas na rocha, e o musgo é papel de parede. E lá em cima, intocável, o castelo. E a igreja. Rochosos e rachados. Há contos de fadas que não têm esta beleza. Santificado seja o vosso monte, Monsanto.
Amanhã dedico-lhe outras palavras e outras imagens. Hoje é para sair.
A vila - Monsanto
A vila II - Monsanto
Ermida da Nossa Senhora do Almurtão - Senhora do Almurtão
Antes do envelhecimento até Idanha-a-Velha há um corte que se pode fazer à direita para visitar o cabeço da Senhora do Almurtão, sítio de romarias e devoções apaixonantes, especialmente por alturas da Páscoa, com uma ermida ao fundo de um terreiro calcetado. É epicentro de várias lendas de aparições da Virgem, transversais a todo o país, e normalmente com o mesmo desfecho, onde a sua imagem é encontrada e levada do ponto onde foi achada para outro qualquer, e na noite seguinte, sem razão aparente, regressa ao sítio de origem.
É também, e aqui há novidades, motivo para uma canção pegada por vários artistas portugueses. Lembro-me de achar a música no primeiro álbum a solo da Teresa Salgueiro, disco em que a vocalista vai ao fundo da terra, e pensar que já a tinha ouvido algures. Soube nessa altura que era um tema do cancioneiro tradicional da Beira Baixa. Tem uma toada patriótica muito forte, até invulgarmente forte, mas ainda assim típica de algumas canções raianas, que existem também nos montes transmontanos - quando lá puser pé, vou a essas -, e canta versos contra a hegemonia castelhana: Senhora do Almurtão, ó minha linda raiana, virai costas a Castela, não queirais ser castelhana. Temos versões da "Senhora do Almurtão" em vozes de referência da música popular, como a do Zeca ou a da Dulce Pontes. Mas para levar o assunto a sério, o melhor é ouvi-la das bocas de onde nasceu, dos agudos estridentes das adufeiras, esses cantos femininos do além abafados pela gravidade do som rítmico dos adufes.
Estando lá, defronte da ermida, vi que a imagem da Senhora está realmente a virar costas a Castela. Pespineta, a menina.
Vivendas - Idanha-a-Velha
Forno Comunitário - Idanha-a-Velha
Pelourinho - Idanha-a-Velha
Idanha-a-Velha é velha. É velha em tudo. Na cara, no corpo e na alma. Pena que uma aldeia destas, uma semente romana onde quase toda a pedra tem uma boa novela por contar, não arranje sítio onde um tipo possa adormecer. Nem um café em que se possa fazer umas vontades ao bucho. O forno comunitário também não funcionou, que, pelo que falei com uma senhora no largo principal, só abre ao fim de semana. Se capta visitantes - que capta, eu bem os vi hoje, e estamos numa Terça-Feira de final de Outubro -, dá-me uma comichãozinha irritante não haver quem os receba. Aproveito esta Idanha para falar de uma outra viagem que se pode fazer e que cruza a aldeia. Desconhecia um trilho transeuropeu que vai da Torre de Belém, em Lisboa, até Constanza, na Roménia. Fiz-lhe uns metros hoje, e pensei num futuro que uma viagem destas me poderia reservar. A ver.
Deixei a aldeia. Não tive outro remédio. Passei por Medelim, de casas com alpendres e portas ao cimo de escadas, bonita e sem barulho. Medelim fez-me sorrir, quando a dona do restaurante me disse que não tinha internet mas que a filha tinha, como se isso me ajudasse. Depois a Aldeia de João Pires e a seguir a Aldeia do Bispo, qualquer uma delas a merecer dezenas de fotografias se arriscarmos direitas para lá fora estrada nacional e formos ao pulmão das povoações. E mais à frente a vila de Penamacor, uma Monsanto menos talhada, bela, tão bela que dava para casar e fazer-lhe promessas de eternidade. Cá moro, de momento, numa casa que tem o cheiro do cavaco queimado em salamandra. Escreve-se. Está bom, o frio. É quase Inverno.
Túnel de árvores - Aldeia de João Pires
Cristianização de rocha à Nossa Senhora do Bom Caminho - Aldeia de João Pires
Amanhã não sei se vou ter tempo para falar da noite de 31 de Outubro. Vou-me adiantar um dia e dar-lhe umas achegas hoje, porque, ao contrário do que muita gente pensa, eu tenho-a como folclore, e folclore de Portugal.
Aquele que para alguns - talvez a maioria - é olhado com desdém e tem o nome de Halloween é uma tradição europeia, genericamente, e portuguesa, em particular. Já lá chego. Antes de mais, faço a ressalva de que as festividades da passagem de Outubro para Novembro podem ser, actualmente, uma americanice, mas há que não esquecer que o dito foi levado em bagagem irlandesa e escocesa da europa para a américa. Por lá sofreu alterações que o tornaram num fenómeno de vendas, e agora está a voltar da américa para a europa num formato que pode ser comercial, é certo, mas que não perde o rasto das origens.
Se o embrião do Halloween é cristão ou pagão, podemos pôr em discussão. Na minha opinião, é pagão. Mas mesmo que, repito, mesmo que, se admita a hipótese de ser cristão, isso não invalida o facto de ter na europa ocidental as suas mais antigas comemorações.
Uma coisa é certa: o nome halloween vem da cristianização da data - all hallow's eve, a véspera de todos os santos, que corresponde preto no branco ao dia anterior a 1 de Novembro, o dia em que os católicos comemoram, lá está, todos os santos. Outra coisa é igualmente certa: nesta noite os povos pré-cristãos da europa ocidental comemoravam a passagem de ano - acabava a estação quente, iniciava-se a fria. Entre o pôr do sol e o seu nascer no dia seguinte, acreditava-se viver uma época de ninguém, sem marcas temporais, onde imperava o caos e tudo era permitido. Uma espécie de carnaval invernal. E infernal. O registo era esse e assim se mantém, na actualidade.
Agora vamos às afinidades com o que anda por cá, na mesma altura do ano.
Na origem das máscaras do Halloween reside a crença de que nesta noite os mortos desciam à terra. Por aqui, dois dias depois, na tradição religiosa portuguesa, celebra-se o dia de Finados ou dos Fiéis Defuntos, em que se presta o culto aos mortos.
Também no dia 1 de Novembro, e isto presenciei eu, diversas vezes, em casa dos meus avós, os miúdos batiam às portas das aldeias pedindo o chamado pão por Deus, e caso os adultos não dessem comida às crianças, estas lançavam-lhes uma praga em cima. Se formos ao Halloween, e podemos ver isso em centenas de filmes, há bandos de gaiatos que andam a correr pelas ruas das cidades e perguntam, batendo nas portadas das moradias, trick or treat?, doce ou travessura?, sendo também lançada uma maldição a quem não os brinda com rebuçados e afins.
Mas há mais. Se nos concentrarmos nos repositórios de ancestralidade em Portugal, vulgo Trás-os-Montes e Beira-Alta, achamos festas, algumas delas ainda celebradas, onde as semelhanças com o carácter desregrado do Halloween são evidentes. Li recentemente, numa transcrição de um texto do Leite de Vasconcellos, que em Mondim da Beira havia uma crença de que as almas fazem na noite de todos os santos uma procissão. Há pouco tempo fez-se também uma reportagem - é só procurar, ela anda no mundo on-line -, na aldeia de Cidões, que acompanhava a festa do canhoto, onde a desordem e o tempo caótico que se vive é em tudo similar ao que é celebrado do outro lado do atlântico.
São coincidências demasiado coincidentes para fazer vista grossa.
Isto como nota para alguns puristas que vêem no festejo do Halloween uma aparente importação de uma tradição que nos é estrangeira - e que a meu ver, como expliquei, não é. Eu vou festejá-lo. Não vem mal algum ao país. Pelo contrário. Só lhe faz é bem.
Rochedo na muralha - Penamacor
Torre de Menagem - Penamacor
Depois do alentejo - Parque do Tejo Internacional
Gado - Parque do Tejo Internacional
Hoje fui mandado parar pela segunda vez.
A primeira foi há cerca de uma semana, pela polícia. Não falei dela, mas aproveito o embalo para a anotar agora. Estava a tirar fotografias ao castelo de Terena e um carro da Guarda Nacional Republicana passa por mim, vindo do sentido contrário. Vi-lhes a desconfiança quando olharam para o Dinis de alto a baixo. Travaram uns trinta metros à frente e deram meia volta, novamente na minha direcção. E ligaram o giroflex. Escrever giroflex é giro mas ainda melhor é lê-lo. Soa a aparelho de ginástica vendido em canais de televisão depois das quatro da manhã. Mas, atenção, não estou a brincar: eles ligaram mesmo o giroflex, que eu bem vi as luzes azuis a andar à roda. Devem ter temido que eu metesse prego a fundo no Dinis e fosse a duzentos até Espanha, onde já não me podiam caçar. De resto, em conversa, depois de encostarem, foi o costume: continência, pode-me facultar a documentação, pois ora muito bem, tudo em ordem, bela viagem e boa viagem, tem de ir a Monsaraz que é muito bonito, pode seguir, continência.
A segunda, como estava a dizer antes de me fazer interromper pela primeira, foi hoje, por um leitor. Nunca pensei ser mandado parar por um leitor. Uma mulher, uma vez, fez-me parar o carro, aqui há uns dois anos. Era ruiva, tinha sardas e tinha ar de fazer covinhas com as bochechas. Tive de estacionar. Até teve direito a travão de mão. Mas um leitor, nunca. Vinha num a descer uma estrada no Parque do Tejo Internacional, em direcção a Alfrivida, e foi-me repetindo um gesto com a mão de fora, que habitualmente traduzimos para tem calma contigo ou abranda-me lá isso. Assim que nos cruzámos, puxei o ferro aos travões. Sem querer romancear, olhei para ele, e ele para mim. Disse:
- Eu leio o blog, eu leio o blog.
Fiquei parvo.
- Lê o blog?
- Leio, leio - e à medida que falava e tirava fotografias, a mim e ao Dinis, mais ao Dinis que a mim, pareceu-me.
- Mas como é que deu com ele?
- No Sapo. Vi-o no Sapo.
Foi bom.
Chegou a ser útil, pelas indicações que me deu, até Monforte da Beira. Virei primeiro à esquerda e depois à direita e depois em frente, tal como ele me disse. Resultou: Monforte.
Alentejo e Beira, lado a lado - Monforte da Beira
Igreja de Nossa Senhora da Graça - Senhora da Graça
É justo dizer que, tal como o Parque de São Mamede é uma fatia de Beira no Alentejo, também o Parque do Tejo Internacional é um pedaço de Alentejo na Beira. Volta o chão flat, sem saliências, seco e a espremer oliveiras e azinhos para fora dele. Este registo mantém-se até chegarmos à Falha do Ponsul, uma parede que se eleva na planície, e desenha uma linha escabrosa, de Oeste a Este, que começa na serrinha do Arneiro e vai até à fronteira, às Termas de Monfortinho. Se pegarem num mapa do país, o medirem de baixo a cima, dividirem por dois, e traçarem uma linha que o cruze, terão mais ou menos este resultado que explico, e que acaba por o separar no lado interior, da forma mais natural possível. É um socalco gigante, se preferirem, a partir do qual, subindo-o, começamos a ver a Beira que as fotografias de calendário nos mostram nas cidades. Como é que se sabe? Sabe-se, sem serem precisas placas de beira de estrada ou velhinhos a contarem-nos como era dantes. A pedra entra na rusticidade das vilas. A casa de xisto ou de granito deixa de ser uma curiosidade para passar a ser uma constante. É uma fórmula que se aprofunda, à medida que se vai para norte, e que lá no extremo cimo, em Trás-os-Montes, atinge o ponto de rebuçado. A mesinha de cabeceira deste novo Portugal que se abriu hoje é Idanha-a-Nova. Uma surpresa. Positiva.
Largo da igreja - Idanha-a-Nova
Falha do Ponsul - Idanha-a-Nova
Trata-se da velha conversa das expectativas: quando são baixas, a haver notícias, só podem ser boas. Sendo franco, na minha ignorância, não esperava uma pérola de Idanha-a-Nova. Talvez por contar com um lado mais urbano, escarrapachado na zona nova da vila, seja facilmente ofuscada por exemplos maiores como Monsanto ou Idanha-a-Velha, paradigmas da aldeia rústica portuguesa. É maior do que as vizinhas, e como tal, sofre do estigma de ser menos pura. Mas depois de horas a pé, quando dei conta, estava a tomar-lhe o gosto. Não tem só a ver com a tradição das adufeiras, que tanto gosto de ouvir nos discos dos Ronda dos Quatro Caminhos, porque essas também as há em redondezas próximas. Idanha-a-Nova tem um perfume moderno, e um bocadinho disso, conceda-se, rompe a monotonia. Vive-se nela em dois compartimentos, como se a separássemos por gama de produto: junto à penha, a parte antiga, de tascos curtos e concisos; mais acima, a parte nova, com casas largas, hipermercados e restauração com multibanco. E goza de estar num décimo andar, do qual, subindo as escadas no largo da Igreja Matriz, temos uma ampla vista de onde podemos acenar ao Alentejo. Se quisermos Beira, é virar costas e seguir vila adentro.
Fórum - Idanha-a-Nova
Painel de azulejos no café "Os Morgados" - Idanha-a-Nova
Penhasco - Ribeira de Nisa
Quase Beira - Ponte sobre o Tejo
Apanhei duas despedidas de solteiro na noite de Nisa. A dele e a dela. Encontraram-se, as duas facções, no mesmo bar. Com dois ou três espaços à escolha na vila, e tendo ambos combinado a despedida para o mesmíssimo dia, notícia seria não darem com a cara uns dos outros. Dançaram, os nubentes, em cima do balcão, ela com um bouquet num formato um bocadinho mais sexual, ele com um fato que me pareceu ser de uma vaca e um boné que tinha um copo de plástico adjacente, com um tubo que de lá saía e terminava na boca, e para o qual os amigos iam despejando um líquido avermelhado, provavelmente sangria, para o rapaz beber. As amigas da noiva iam sem registo de festa. Os do noivo tinham traje, uma t-shirt branca que dizia game over, curiosamente uma que também eu tenho no meu armário, noutra cor. Esses e essas ficavam em baixo, a aplaudir os de cima e a cantarem músicas acompanhadas em órgão barato: aquela brasileira que começa com nossa, nossa e que fala de uma mulher que metaforicamente mata o vocalista, outra, também brasileira e que não me recordo do nome, mas que tem uns ritmos de forró e soa a uma versão ainda mais enjoativa da lambada, e depois umas portuguesadas dos Xutos, e tal, que calham sempre bem porque ninguém tem a lata de dizer que não aprecia Xutos. Este era o sítio com gente mais velha. O outro, mais junto ao jardim principal, tinha uma média de idades que dava para oitenta por cento do pessoal me tratar por paizinho.
Medronheiro - Vila Velha de Ródão
Trabalho no Tejo - Vila Velha de Ródão
Vim cedo e cheguei cedo a Vila Velha de Ródão. É um caminho que tem mais de natureza do que de civilização. Faz-se entre serras, com curvas a intervalar penhascos que ameaçam derribar pinheiros por ali abaixo, até chegarmos, primeiro, à ponte sobre a Ribeira de Nisa, e segundo, à ponte sobre o Tejo, metálica, uns bons cem metros acima do nível da água.
Se olharem para a esquerda, sentido Oeste, vêem uma das mais belas manifestações naturais a fincarem pés neste país: as Portas do Ródão. São dois cabos que terminam em cada uma das margens do rio, um vindo de norte, outro de sul. Vendo de perfil, formam um copo triangular, com as águas a taparem-lhe o fundo. Se os espreitarmos por cima, parecem dois longos dedos esticados até ao máximo mas que a vontade do rio seguir caminho não permite que se toquem. Foi a força incessante de um Tejo que tanto quis chegar a Belver, e a Santarém, e a Lisboa, que chocou com as rochas até lhes abrir ferida. Ela vê-se, bem exposta, da ponte. Dá a geologia razão ao ditado da pedra dura que a água fura. Não é de espantar, portanto, que esta estátua natural tenha sido divinizada, em lendas e mitos, mas já lá vamos.
À direita, depois de atravessarmos o rio, fica Vila Velha de Ródão, simples, quase fantasma ao Domingo. Da vila pouco vou falar. Não é de encantar. A vista desafogada que tem para o vale mostra-nos fábricas de indústria papeleira como se fossem manchetes de jornal. Nas suas costas há serranias de pinheiros a esconderem medronheiros e rosmaninhos que têm muito mais para dizer, se houver o esforço de andar por trilhos pedestres, alguns de exigente acesso.
Foi por lá que vi o suor recompensado por uma das mais desarmantes vistas que tive, depois de trepar pedra até quase desistir. E foi igualmente por lá que conheci uma das mais fascinantes lendas que me passaram na memória, junto ao castelo do rei Vamba. Terei de voltar atrás, às Portas do Ródão, novamente.
Vista para as Portas do Ródão - Vila Velha de Ródão
Trilhos pedestres - Vila Velha de Ródão
Lá do cimo - Vila Velha de Ródão
Há diversas versões, umas alentejanas, outras beirãs, mas vou-me resumir àquela que está descrita junto à ermida.
Conta-se que, por alturas do avanço sarraceno, o Tejo separava o rei Vamba, visigodo, na margem direita, de um rei mouro, na margem esquerda. Vamba, entretido com a guerra e outros passatempos, deixou a sua mulher a governar as suas terras. A rainha cristã apaixonou-se pelo mouro, e diz-se que namoravam um com o outro sentados em grandes cadeiras de pedra, cada um na sua margem, num e noutro lado das Portas do Ródão, como se de guardiões do rio se tratassem. O rei mouro, perdido de amor, planeou o rapto consentido da rainha, por um túnel que passaria abaixo do Tejo e desembocasse no outro lado. As contas falharam e o túnel não terminou no destino certo. Ainda assim, a rainha acabaria por se escapar para junto do amado, atravessando uma teia de linho que fez de ponte entre os dois lados das Portas. Vamba, tendo conhecimento, planeou novo rapto, com sucesso. Uma vez recuperada para o lado cristão, Vamba condenou-a à morte, por despenhamento, presa a uma mó de moinho. Na queda a rainha lançou uma maldição sobre Ródão: nesta terra não haverá cavalos de regalo, nem padres se ordenarão e putas não faltarão. Acredita-se que por todos os sítios onde a rainha passou, arrastada pela mó, jamais nasceu mato.
O que ganha interesse ao ler tal coisa é que não é assim tão grande o passo daqui para a mitologia. Das Portas do Ródão criaram-se Deuses, e dos Deuses lendas, mais adaptadas ao contexto histórico e cultural da altura, no caso, a invasão moura da península. É só uma suposição. Pode não ser verdade, mas não é absurda. Basta uma olhadela a algumas representações das Portas do Ródão e não é preciso grande imaginação para inventar o resto.
De um banco para outro, as Portas do Ródão - Vila Velha de Ródão
Representação antiga das Portas do Ródão
Vista para Oeste - Portas do Ródão
Tanque de água e lavandeiras - Castelo de Vide
Fonte - Castelo de Vide
As fontes são boas para tagarelar. Tenho reparado nisso. A que está já fora da vila de Castelo de Vide, mas bem próxima, tem costas largas e um tanque por trás. No tanque reúnem-se mulheres a lavar roupa da casa e a pôr a conversa em dia. Os homens mais facilmente os encontramos na parte da frente, junto às bicas, de onde recolhem a água para garrafões de plástico de cinco litros. Quando cheguei estava a abarrotar. Tinha fila. O aviso está lá, a encarnado, bem visível, a explicar que aquela água não é controlada. Ninguém faz caso disso.
- A Câmara antes fazia análises a esta água. Agora deixou-se disso e pôs esta placa para poupar dinheiro.
- Mas a água é potável? Pode-se beber?
- Se se pode beber? Eu moro em Portalegre e olhe que não bebo outra. É das melhores que há.
Virei-me para a bica, inclinei-me sobre ela, pus as mãos a formar uma concha e dei dois ou três tragos.
- Então? É boa ou não é? - perguntou o homem, na expectativa.
- É boa sim senhor.
E era. Fresca, mesmo muito fresca. Parecia neve a entrar-me na boca.
- Pois claro que é. Então em Castelo de Vide onde é que há espaço para ela se estragar?
E falou-me depois de como a vila tinha entrado na moda, recentemente, por causa de filmagens para a televisão. Disse que não sabia que filmagens eram essas e ele ficou espantado por eu não ir á bola com telenovelas.
- Há uma que é gravada aqui - explicou ele.
Respondi que não fazia ideia, que mal ligo a televisão e que quando o faço é para uma de duas coisas: ou ver notícias, ou ver desporto. Que sou cinéfilo e isso já me consome tempo suficiente. Que não vejo novelas, nem séries americanas, nem reality shows. Que não tenho nada contra, só acho que cria uma dependência parva e eu não a quero ter. E que para isso bastam-me a bola, o rugby e os telejornais. Ele percebeu, com um encolher de ombros.
Anta de Coureleiros - Castelo de Vide
Igreja da Misericórdia - Alpalhão
De mão dada com Castelo de Vide, passei por uma anta, de um total de quatro que há no parque. São as antas dos Coureleiros. Está virada para Este, o lado nascente, de onde o sol cresce para invadir o espaço interno de luz. Portugal tem molhos delas, e molhos de menires a acompanhar. E tenho a certeza que há outros mais por descobrir. Só nestas paragens do interior sulista, perdemos-lhes a conta. É engraçado entrar neste mundo, em que o feminino e o masculino são imaginados na pedra e partilhados com a natureza. Das antas temos a energia feminina, com a representação do órgão sexual da mulher. Dos menires a masculina, com a caracterização nitidamente fálica que apresentam. Daqui, acreditava-se criar uma harmonia espiritual entre o Homem e o que o envolvia. Dantes, passava-se assim.
Alpalhão é ali bem perto, já excluído da zona do Parque da Serra de São Mamede. É o que ainda sobra do alentejo. Tenho pena de já não poder ouvir-lhe o Descante dos Noivos que o Giacometti gravou nas suas vastas recolhas musicais que fez pelo país. Ainda por cima, sendo Sábado, seria dia provável para o ter à mão. O casamento de Alpalhão tinha uma versão alternativa. Não era como os outros. No dia em que os noivos ficavam oficialmente casados, os convidados dirigiam-se à casa onde pernoitavam, já depois do jantar, e cantavam-lhes versos de boa fortuna, primeiro à mulher, depois ao homem: era o Descante. Segundo o que li, as pessoas só davam de frosques quando ele, o recém-casado, lhes trazia carne e vinho. Seria este, portanto, o preço para a noite bem passada - grande eufemismo, este - com a mulher que desposou. Há tradições que se perdem porque não têm a carga simbólica necessária para que novas gerações lhes peguem. Outras que têm tanta força que nem a tecnologia e décadas e décadas de velocidade industrial conseguiram abater. E ainda outras que se esquecem e se relembram anos mais tarde, ressuscitando com novo folgo. Em que categoria é que o Descante dos Noivos está, não consegui perceber. Espero que fique. Mesmo mudado, que vá ficando.
Outro mistério - Alpalhão
Casa e banco de jardim - Nisa
Entre Alpalhão e Nisa encontrei outra pedra que fala. Foi quase por engano. Fica numa propriedade privada, com acesso proibido, e que eu interpretei de outra forma. Passei por um muro de pedras soltas e saltei por cima de um arame farpado que me rasgou a camisa e feriu a barriga. Está a cerca de trinta metros da estrada principal, do lado esquerdo de quem se dirige para norte. A rocha tem uma forma arqueada, esquisita, e é bem larga. Está disposta na vertical, e tem uma cruz de ferro no topo. Não está cartografada, nem tem placas a indicar-lhe o caminho. Desconheço-lhe o nome e desconheço sequer se ela o tem. Mas há-de carregar alguma importância pelo crucifixo que lhe cravaram em cima.
Despeço-me hoje do alentejo, em Nisa. À hora de jantar, lá irei ao queijo, que é da praxe. Vou aproveitar para respirar os últimos ares alentejanos, que aqui já têm brisas beirãs. Falando de Nisa, é bom notar que há castelos que não fogem às pessoas, ou vice-versa. Aqui, o que resta das muralhas e torres castelares dissolve-se no quotidiano. E mais que a Igreja Matriz, espevitada nas torres de telhado cónico, é a torre do relógio que se faz notar. Vejo-a daqui. À noite, se a iluminarem, fica o sítio para onde todos olham, de certeza. Ficarei atento ao mudar da hora, daqui a pouco.
Para o fim guardo uma notícia triste. A Árvore da Mentira, ícone da vila, assim chamada por lá se juntarem pares de namorados, que ali debaixo, na sua sombra, diziam as maiores mentiras de amor uns aos outros, foi cortada. Agora está envernizada, feita unidade de exposição de arte contemporânea. Dar cabo de símbolos já é mau que baste. Terminar com a vida de uma árvore que tinha o bem humorado desplante de ser conhecida pelos maus namoros que abrigava, é crime. Se havia solução para ela que não a morte, tenho um pequeno e construtivo comentário a fazer a quem se lembrou de acabar com ela: vão bardamerda.
Torre do Relógio e Igreja Matriz - Nisa
Árvore da Mentira - Nisa
Muro em pedra - Serra de São Mamede
Dinis em esforço - Serra de São Mamede
Se Portalegre já é norte-alentejo, com o norte sublinhado, aqui alentejo é só mesmo referência geográfica e pouco mais que isso. As estradas fazem-se a subir, sempre a subir.
A flora foi mudando à medida que me guiava para norte, em direcção a Marvão, com os sobreiros a serem substituídos por árvores de outra envergadura: são pinheiros e castanheiros e carvalhos a mudarem tonalidades e a verdecer uma paisagem que se vai tornando mais atlântica que mediterrânea, com a bruma a esconder cumes inalcançáveis e o vento a trazer frio do norte. E então ele revela-se. Nada nos prepara para a primeira vez que vemos Marvão, autoritário e sem cerimónias, quase a novecentos metros de altitude, e nós uns duzentos abaixo. Aqui, manda ele. O que disse há cerca de uma semana sobre Monsaraz não chega. Adoro Monsaraz, que isso fique gravado em pedra. Monsaraz é poética, é um soneto de amor, uma princesa que inspira canções e a cor do Verão. Marvão não é nada disso. É escarpado, musculado, masculino. É uma prosa épica ou uma epopeia ou boa literatura de um género qualquer próximo do fantástico. Monsaraz pede vinho branco e Marvão obriga ao tinto. Uma cheira a esteva, o outro a pinha. Esqueçam tudo o que ouviram sobre Marvão. É mais bonito do que o que vos contaram. Esqueçam tudo o que estou para aqui a escrever também, é pouco e sabe a nada. Tem de se ver. Tem de se vir. Saramago escreveu que quem o pisa consegue ver o mundo. Se calhar foi o mais próximo que as palavras lhe fizeram justiça - pequena, mas ainda assim, justiça.
Chegada a Marvão - Marvão
Vista para Marvão - Serra de São Mamede
Escadas da muralha - Marvão
Se sairmos das muralhas e começarmos a descer a única estrada que de lá sai, encontramos à direita o Convento de Nossa Senhora da Estrela. Diz a lenda que os Visigodos esconderam aqui objectos de devoção cristãos antes de se retirarem para as Astúrias, a franja ibérica que os sarracenos não conseguiram vencer. Mais tarde, com o reino de Portugal já formado, um pastor viu o brilho de uma estrela no monte e, quando a procurou e achou, percebeu que se tratava de um desses objectos, uma imagem de Nossa Senhora, que ficou assim Nossa Senhora da Estrela. O que é daqui verdade, sabe-se lá. Enigmática é a cruz que alçaram num penedo limite, a cerca de vinte metros do convento, onde em um passo vamos ao precipício. Mal olhei para ela pensei em antigos ritos religiosos que ali devem ter sido feitos, em religiões longínquas, e que agora também o são, com outras roupagens. Fui pesquisar e existe, obviamente, uma romaria que termina aqui. Não tem como enganar. Quando se se dá ao trabalho de se meter uma cruz em sítios que não lembram ao menino Jesus, é porque houve ali sinais de veneração a outros Deuses. E a verdade é que sentimos que ali conversamos com o céu. Se não acreditarmos em Deus, fazemos Deus de nós próprios, porque sim, porque aqui é válido sentirmo-nos reis do mundo.
Vista para a serra - Marvão
Cruz junto ao Convento de Nossa Senhora da Estrela - Marvão
Se houver escolha, é preferível ir primeiro a Castelo de Vide e depois a Marvão, para irmos em crescendo. Há muita beleza em Castelo de Vide mas não é o apogeu. Como apanhei a serra pela encosta virada a sul, acabei por fazer o inverso. É bom na mesma, só não é o melhor.
Agora, Castelo de Vide. O actor principal é o castelo, no cume. Nisso, nada de novo. Mas a circulá-lo há novidades, quando começamos a notar qualquer coisa de Beira por aqui. A judiaria é boa comparação, com a sinagoga, modesta porque não podia ser mais que isso, e a fonte da vila, diferente, em mármore. Conhece-se a vinda de judeus de Espanha para Portugal, na altura em que o vizinho insistiu que eles eram mauzinhos e deveriam ser expulsos do país. Muitos fixaram-se na raia, sobretudo mais a norte, em Trás-os-Montes, Beira-Alta, Beira-Baixa e no Alto-Alentejo. Formaram-se bairros para eles, as tais judiarias, separados dos cristãos, e não raras vezes mal vistos pelo povo. São parte da história das vilas e cidades fronteiriças, mesmo depois de Espanha nos ter convencido a importar a Inquisição para cá. Alguns fugiram. Outros ficaram, obrigados a uma nova prática religiosa. O que é interessante ver em Castelo de Vide é que, não negando que tenha havido perseguições aos judeus - e acrescente-se que a zona judaica está na encosta menos banhada pelo sol, provavelmente arredores pouco apetecíveis, frios e nada acolhedores, onde ninguém queria ficar, e por isso cedidos aos mal amados judeus -, há indicadores de que as suas práticas foram, em parte, integradas nos costumes da vila. Isto é ainda mais notório no período da Páscoa, que segundo um dos bombeiros com quem falei, é a festa de Castelo de Vide, maior que o Natal. Ora, quem é que tem também a Páscoa como a primeira festividade do ano. Pois, voilá, os judeus. O Domingo Pascal em Castelo de Vide, sei-o agora, é um evento. Está fora do baralho e quem o vê, diz-se, não lhe acha grandes pistas de cristianismo. País curioso, este.
Vista para a vila - Castelo de Vide
Judiaria - Castelo de Vide
Aqueduto - Elvas
O mau tempo não me deu descanso. A chuva era grossa e recorrente. Não era aquele chuvisco que areja. Foi dilúvio mesmo, impetuoso. O céu nunca deixou de estar carregado, sempre da cor do cimento, e fez-me mudar de roupa duas vezes em cinquenta quilómetros, uma em que aproveitei uma das paragens de autocarro com a cal do alentejo, outra em que tive do o fazer debaixo de uma oliveira, uma péssima árvore para alguém se abrigar, devo dizer. Quando passou estava inundado e a cinco minutos de Portalegre. Vi a vila de Arronches com um manto de chuva à frente, e pareceu bonita, para lá da cascata que estava entre mim e ela. Santa Eulália já foi melhor porque a pisei. Com muita chuva, é certo, mas calcar a terra é mais do que espreitá-la ao longe. O que fiquei a saber de Santa Eulália, e que vos posso dar de graça, é que a bomba de gasolina, já quase no final da vila, protege da chuva e tem restaurante e tem minis. Não é muito, mas ajuda caso apanhem umas horas bruscas e de má vontade como as que me vieram à sorte. Avisaram-me aí que as nuvens mais escuras estavam a caminho de Portalegre e já deu para perceber que estes opinanços do campo relativamente ao tempo estão quase sempre certos, tanto que já deixei de consultar o site de meteorologia e, em substituição, passei a ir ao jardim da terra para perguntar aos homens de boina e casaco de lã com losangos como é que acham que o dia vai estar.
- Olhe que se se mete pela estrada de Portalegre vai levar com uma carga de água…
Certeiro. Na mouche.
Abrigo - Elvas
Praça da República - Portalegre
Já dá para ver que este alentejo é mais nortenho. Deixámos o âmago da província. Aquilo que um lisboeta imagina quando fala do sentir alentejano são migalhas em Portalegre. As casas com molduras nas janelas de cores garridas e rodapés berrantes são menos frequentes. A paisagem da planície é arrematada por serras verdejantes. O horizonte deixa de ir até tão longe e interrompe-se em silhuetas de colinas altas. O reinado do sobreiro está para terminar. As pessoas têm menos amor à lentidão e ao compasso. O vagar passa gradualmente de feitio para defeito.
Estamos ainda além-tejo mas já acima de Lisboa - convém lembrar que o Tejo, tal como o Mondego, vai seguindo para norte à medida que andamos para montante, o que faz com que quanto mais para o interior, mais a norte tenhamos de estar para o atravessar. Daí a geografia nos dar aldrabices como a que muitas vezes é pensada e dita, ao se classificar, por senso comum, Portalegre como sul de Portugal e Lisboa como Centro, quando a primeira está bem mais a norte que a segunda.
Aliás, há um elo antigo entre as duas margens do rio, que acaba por ligar o distrito com as serranias lá de cima. São as transumâncias dos pastores oriundos de zonas setentrionais, como o Marão, a Estrela, ou a Gardunha, que vinham aqui parar, à serra de São Mamede, conforme a época e a constante procura de climas mais favoráveis indicava. Se calhar não é arriscado dizer que este alentejo vira costas ao outro alentejo, e começa a olhar para o norte, porque lá encontra uma imagem mais próxima de si.
Portas da Deveza - Portalegre
Sé - Portalegre
E Portalegre é mesmo cidade, sem falsas promessas. Já lhe vejo os tiques todos. Os carros encostam-se uns aos outros, parados, mesmo em praças e largos de história, e estão nas tintas para quem esteja de visita. Os rapazes e raparigas entre os vinte e os quarenta atestam imperiais até à hora de jantar, que é uma introdução à noite que chega depois, pelo que sei junto à Praça da República. O trânsito tem direito a buzina, e a táxi, e a insulto. A polícia tenta educar e ganhar dinheiro ao mesmo tempo, quando passa multas de uma ponta à outra, nas ruas em que os passeios são estacionamento. É o folclore citadino, tão relevante quanto o campestre, às vezes até desenjoativo da pasmaceira bucólica, em que a pressa de chegar e sair de um trabalho e a necessidade de fazer uma carreira se sente no pulso.
À margem desta desordem, da qual até já sentia alguma falta, fui às tapeçarias, que têm museu, junto à Sé. Esta arte de Portalegre sabe mais que as outras. Tal como em Arraiolos, aqui há o chamado ponto de Portalegre, que lhe dá uma marca de água que, vi eu, transforma a tapeçaria num quadro que parece, sem exagero, uma pintura. A passagem do retrato para o desenho a lã, se esquecermos o pormenor do aumento da escala, por vezes nem é perceptível. Consta-se que, por snobismo típico de quem não percebe patavina do assunto, esta forma artesanal, no seu início, nem convencia muita gente, que continuava a achar a francesa como a melhor - claro, sempre a francesa, esse bastião cultural não pode ser contrariado. Foi preciso qualquer coisa parecida com um blind test mas que não o é no próprio sentido literal das palavras, caso contrário ninguém via nada, para que a tapeçaria portalegrense fosse reconhecida mundialmente.
Blind test da Tapeçaria de Portalegre (o da direita é o da cidade) - Portalegre
"A Bela Aurora", a minha favorita, no Museu da Tapeçaria - Portalegre
A chuva perto de Estremoz - Glória
Castelo - Alandroal
Estes são os domínios de Endovélico, Deus da saúde e da terra, aparentemente celta, venerado em tempos pré-romanos. O roteiro megalítico faz-nos passar por várias obras milenares, já mal lembradas pela história, que picotam entre pequenas aldeias e vilas cujas gentes vivem abençoadas por estas pedras. Antes de mais, há que não cair na realidade de hoje, e perceber que elas, as pedras que hoje vemos como calhaus sem causa, foram antes as igrejas e conventos e catedrais de alguém. Têm vida e contam segredos. Claro que podemos meter as lentes da modernidade e vê-las como o que parecem ser, umas sequências de monólitos, apenas, mas quem o fizer corre o risco de se tornar mais empedrado do que aquilo que observa.
Ir ao Alandroal e a Terena, vilas entroncadas e armadas de castelos da fronteira, ou à Aldeia das Pias, e ao Seixo, e aos Capelins, aldeias de gado e azinheiras e sobreiros em pastos ondulados, faz-me ainda não ter saudades da cidade e do barulho dos bares. Ou ao Rosário e a Ferreira, entre as quais há uma ponte que atravessa águas bentas chamadas de Ribeira do Lucefécit. E o Lucefécit, por si só, que vira albufeira mais a norte, e que continua carregado de mistério, a começar pelo nome ímpio que carrega. Lucefécit parece vir, e vem mesmo segundo alguns investigadores, de Lucifer, o portador da luz que mais tarde veio a ser satanizado por quem mandava no cristianismo até passar ao exacto contrário do seu real significado: o senhor das trevas. Se há perguntas quanto à heresia que estes campos representam para algumas almas mais beatas, o Lucefécit tira-nos as dúvidas.
Aqui, nestas paragens sagradas, o que era pagão transformou-se no que ficou cristão, mas ainda é muito de cada um. Fiquei a conhecer o alentejo do céu, por oposto ao alentejo da terra que andei a fisgar nos últimos dias.
Vista para o castelo - Terena
Ribeira do Lucefécit - Rosário
E continuando nestas andanças fui ter à Pedra Alçada, junto à Aldeia das Pias, e que passarei a tratar por Pedra do Galo porque é assim que é conhecida nas imediações. Pedi explicações. Pelo que tinha lido, estava mal sinalizada e só com ajuda dos aldeões lá se parava. Disseram-me para voltar à direita depois da escola, seguir por um caminho de terra batida, e estar atento aos troncos das árvores nos montados, porque lá estão pintados os sinais até à Pedra. Duas barras paralelas, uma de cor amarela e outra encarnada, significam que o caminho está certo. Duas cruzadas, em forma de x, com as mesmas cores, que está errado. Tive de deixar o Dinis e seguir uns seis ou sete quilómetros a pé. E seguindo as tais indicações não há forma de um tipo se perder.
A Pedra do Galo é um menir, ou poderá não ser. De uma só pedra, ou poderão ser duas. Não se sabe. Há quem diga uma coisa e há quem diga outra, o que dá jeito para alimentar o mistério. Passei por muito carneiro e muita ovelha até lá chegar. E quando parei, diante dela, e lhe topei o tamanho em metros, olhei para trás e pensei que faria o triplo da distância só para a ver novamente.
É imponente, na largura e na altura.
Se a olharmos como um bloco apenas, natural, caído do céu, não deixamos de a ver como imperial, muito acima da nossa condição. Dá cabo de nós tê-la por perto.
Se imaginarmos que estão ali dois blocos, bem encaixados por mão humana, feitos peças de puzzle, vamos acabar em mitos antigos associados a lendas de gigantes.
É preferível a incerteza.
Eu e a(s) Pedra(s) do Galo - Aldeia das Pias
Perto da Pedra do Galo - Aldeia das Pias
Foi só pelas cinco da tarde que decidi ir para Elvas. Essa do Paco Bandeira cantar que Badajoz está à vista não é bem assim. Está aqui a roçar a periferia, e eu bem dei conta disso quando o telemóvel me fez ler uma mensagem que me dava boa viagem por ter chegado a Espanha, mas é preciso ter boa gradação para ir até Badajoz com ela.
Conheci-a mal. Já cá tinha estado, das inúmeras vezes que aqui passei para rambóias no país vizinho, mas nunca a vivi, e temo que ainda não seja desta. Estou cansado e pelas pessoas que vejo na rua parece-me que Elvas se vai deitar cedo comigo. As muralhas, que se acham de bem longe, são de facto anormais, num sentido positivo qualquer que lhe queiram dar. Nem sei bem se tanta parede amuralhada significava que éramos de facto uma nação poderosa ou se estávamos mesmo com muito medo de Espanha. O centro histórico, que está de parabéns por ter virado património mundial da humanidade - já fez mais do que o de Lisboa, por exemplo -, enche o olho.
Talvez ainda vá dar uma volta. Talvez tenha mais para dizer sobre o que passei em Elvas. No dia depois de este.
Igreja da Nossa Senhora da Assunção - Elvas
À noite - Elvas
Paço Ducal - Évora Monte
Antes de mais, adianto que poderá haver uma ou outra falha na crónica de hoje - seja no texto ou nas fotos. Estou abrigado numa casa amiga por esta noite e o sinal existe, mas não é fabuloso. Ao que interessa, agora.
Évora Monte é tida como terra da paz porque selou o fim da guerra civil. As guerras civis acontecem obedecendo quase sempre à mesma lógica. Há um povo que se sente colonizado por outro e junta-se para expulsar aquele que considera ser o invasor. Depois de o conseguir, fica a pergunta, e agora que já somos livres e senhores de nós próprios, quem é que vai ficar à frente disto?. Como a pergunta tem resposta de escolha múltipla, a malta não chega a acordo e prefere resolver isto à antiga, como homens a sério. Olhem para Angola, por exemplo. Ou para a Irlanda, em que os tipos que lutaram pela independência da Grã-Bretanha, foram precisamente os mesmos que se viraram uns contra os outros na luta pelo poder interno. A nossa, contudo, não teve nada disto, porque não havia colonizador, sofrendo portanto uma espécie de desvio de personalidade sul-europeia. Tal como a origem de Portugal começou num miúdo que decidiu não obedecer à mãe, a origem da guerra civil começou por dois irmãos mimados - na altura chamavam-nos reis - se terem chateado. O primeiro, de nome Pedro, devia achar o país meio frescote e foi para o Brasil. O segundo, de nome Miguel, não se importou com o tempo frescote e resolveu ficar por cá. O problema é que o segundo prometeu uma coisa ao primeiro e foi mentiroso porque não cumpriu. O primeiro armou a bronca quando viu que o mano não era de palavra e resolveu dar uma folga aos brasileiros e voltar a Portugal para pedir satisfações. Como o Pedro era mais prá frentex, apelidaram-no de liberal. O Miguel, pelo contrário, tinha a mania que mandava mais que os outros, e chamaram-no de absolutista. A bulha dos amigos do Pedro contra os amigos do Miguel só terminou uns anos depois, aqui, em Évora Monte, a tal terra da paz que falei no início, com a rendição dos miguelistas.
Pormenor de fachada no Paço Ducal - Évora Monte
Vista do castelo - Évora Monte
No que toca à visita, mesmo que se venha sem a eloquente base histórica que tive o cuidado de assinalar acima, Évora Monte tem a individualidade de ter um castelo interior bem diferente do exterior, e é o de dentro que lhe dá o postal turístico, o Paço Ducal. Tem quatro torres, um em cada vértice do quadrado que forma. Esculpido ao longo das paredes está um ornamento que lembra as artimanhas manuelinas e o transforma numa espécie de presente de um magnata para outro: são cordas de pedra que, dando a volta ao castelo, se unem a meio de cada fachada num laço, ou num nó. Ainda intramuros está a Igreja Matriz, onde conheci uma senhora local, e quando digo local falo mesmo de quem vive no castelo, não dessa malandragem que saiu da muralha e foi viver para onde andam os restaurantes e os mercados.
- Há muita gente a viver aqui?
Ela pensou um bocadinho e disse que ainda havia alguma, sim. Pensei, por desconhecimento total, que alguma gente equivalia a uma centena, ou mais, se calhar. Percebi que não quando ela seguiu conversa:
- Olhe, ali naquela casa estão logo uns seis…
- Seis?
- Sim, só ali estão logo seis.
- Bem, mas seis não é muito.
- Sim, mas ao todo somos dezassete ou dezoito - e esbanjou um gesto de quem acha uma fartura.
Dezassete ou dezoito, sim senhor, está aqui um viveiro que se não se tem cuidado com a abundância ainda as muralhas vão abaixo do aperto.
- E há muitas pessoas que só vêm ao fim de semana.
- Pois, imagino - disse-lhe eu.
A pontuação da voz mostrava bem o orgulho que ela tinha na terra onde sempre viveu. Percebe-se. É olhar à volta: e percebe-se.
Dinis e eu - Évora Monte
Largo central - Estremoz
Em Estremoz aprendi sobre os bonecos em barro que lá se fazem. Investigações mais recentes descobriram que a origem delas está nas mulheres estremocenses, ditas bonequeiras, e não nos oleiros, como antes se pensava. Pegavam numa base de barro e acrescentavam-lhe um bloco do mesmo material em cima, que seria depois lapidado até formar o corpo que se pretendesse. Os membros e objectos eram feitos à parte e colados, barro com barro, à base que já estava feita. Os temas que os bonecos de Estremoz abordam são muitos e dão pano para mangas mas dos que vi, em exposição, a maioria reproduzia o trabalho de campo dos alentejanos, alguns deles com representações de profissões que já nem existem ou que foram mecanizadas. Quando o negócio começou a decair, as bonequeiras atiraram-se para os assobios, peças que contavam com um apito, também em barro, anexado, e habitualmente muito requisitados pelos gaiatos. Veio-me à memória um ou outro que tinha por casa.
A tradição esteve por um fio, e não fosse a iniciativa de certas pessoas que lhes achavam graça, morreria mesmo, algures no início do século passado. Acabou por se passar conhecimento, de uma mão para outra, e lá conseguiu resistir. Está exposta uma colecção no museu municipal. Dependendo do dia, paga-se zero para a ver. Toca a mexer.
Largo Central - Estremoz
Assobios - Estremoz
Igreja - Ilhas
A dois quilómetros de Arraiolos há uma aldeia modesta, sem cremes nem botox, chamada Ilhas. Segue o declive moderado do monte até ao vale, o Vale Bom, proveitoso em águas. É bom espreitar porque mantém a tradição campestre do alentejo, com as pregas à mostra e sem vergonha disso. A igreja não está num largo, a commumente chamada praça central das vilarejas portuguesas, mas sim meio perdida no final de uma estrada que termina a poucos passos da planície. Até lá há cafés, fechados, e homens de idade acompanhados de cães a dizerem-me adeus. Acredita-se que foi povoada por gentes das ilhas, no caso, dos Açores, daí o nome. É conhecida a colonização que o arquipélago açoriano teve, sendo uma quota-parte dela de origem alentejana. Aqui está uma retribuição, em jeito de karma, com os Açores a exportarem mercadoria humana para o continente.
Vinha - Monte da Ravasqueira
Um branco em preparação - Monte da Ravasqueira
Provavelmente à mesma distância mas para o lado de lá da vila, há o Monte da Ravasqueira, terra de vinha e de vinho. A estrada de terra batida não foi simpática para o Dinis mas a flanqueá-la um tipo entretém-se com a paisagem, numa lagoa avizinhada de sobreiros, verde como o alentejo normalmente não chega a ser, e marcada por desenhos geométricos da parra a pautar distâncias. A adega está no piso térreo, depois de descermos quase tudo. À medida que se alcança, vem o cheiro. É terra e é uva e é mosto e é fermento. Experimentei vinhos em catadupa. Eles, o Pedro e o Vasco, enólogos, bebiam e cuspiam; eu, Ricardo, consumidor, bebia e engolia. Gosto muito de cerveja mas à cerveja falta-lhe a liturgia. É muito toma-lá-dá-cá. O vinho não. Tem rito. É religião. Dá gosto ver os pormenores corporais, ritualísticos, que antecedem o beijo que damos a um tinto. Na cerveja não damos beijos, damos linguados. Só o vinho merece o chocho.
Julgar um vinho é tão válido para um ignorante como eu, como para o homem que o fez. E houve um deles que me ficou, mais do que os outros, bons também. A cor tinha sex appeal, e isto importa. Nunca vi nenhuma crítica de vinhos falar em luxúria e espero ser pioneiro: garanto-vos que aquele era erótico. Tinha uma cor que deslizava no vidro feita pele de modelo. Era um vinho para homens porque tinha a volúpia de uma mulher. Sai para o ano que vem. Posso dizer que vi o trailer e promete. A fixar.
Igreja de Santo António - Arraiolos
Castelo - Arraiolos
Arraiolos e tapetes. Cá está a causa-consequência. Visitei lojas, e na "Arte em Casa" fui especialmente bem tratado. Houve conversa para encher e depois fui onde queria:
- O negócio vai bem?
- Não me posso queixar.
Apresentou-me às tapeçarias maiores e completou:
- Já há pouca gente a comprar destes - deixou cair o braço direito e com o esquerdo apontou para o outro lado -, agora vão para tapetes mais pequenos, como estes, e para outros produtos que fui fazendo.
Olhei à volta. Ali estava um excelente exemplo de diversificação de produto que qualquer académico de gestão ouviu falar na universidade. Com o exigente ponto de Arraiolos, que obedece a determinada aritmética, começou a fabricar, com os mesmos novelos de lã coloridos e o mesmo tipo de bordado, pequenas amostras, quadros, sacos e até pufes. É de gabar quem usa a imaginação para adaptar uma tradição aos objectos de uso comum, trazendo-os para um contexto cultural facilmente reconhecível.
- E há cada vez mais turistas - acrescentou.
- Estrangeiros?
- Estrangeiros, sim, brasileiros. E portugueses. Agora com o preço das auto-estradas, muitos voltaram às estradas nacionais. Poupa-se dinheiro. Isso é que é preciso. Que voltem às nacionais para passarem por Arraiolos. Por mim que aumentem ainda mais as portagens.
É o lado de lá da crise, que tem benefícios mas que não fazem notícias de jornal.
Tapetes e pufes de Arraiolos - Arraiolos
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