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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Sábado, 06.10.12

De Salvaterra de Magos a Coruche

Praça de Toiros - Salvaterra de Magos


Rua junto à Praça da República - Salvaterra de Magos

 

Salvaterra não tem uma rua com bares para sairmos à noite. Tem uma rua com cafés que fecham um bocadinho mais tarde para sairmos à noite. O que é bom. Agrada-me, de vez em quando, estar num sítio onde não preciso de pensar no que se segue. Aqui não se passa nada e não é difícil adivinhar o que é que a noite me vai trazer. Há bares em que me esforço tanto para meter conversa que sinto que deveria ter ficado num clube recreativo, com bilhar e dardos, a amaldiçoar o que quer que passasse na televisão. Nestes cafés que circundam as praças centrais das vilas, acontece assim, como nesses clubes de freguesia. São os outros que vêm falar comigo. E normalmente sobre a Casa dos Segredos. Acabou cedo, como é evidente, mas tive mais vida social nessas horas do que no resto da viagem.

 

Fonte de água - Salvaterra de Magos


Uma das subidas do Dinis a caminho de Coruche - Várzea Fresca


Montado - Fajarda

 

Tive muita pena, esta manhã, quando me apercebi que a Falcoaria Real só abria à tarde. Um dos máximos de Salvaterra é este. Intimamente ligada ao Paço Real, este espaço mostra a afinidade da terra Salvaterrense com a fidalguia e a aristocracia portuguesa - a Capela Real está cá também, a prová-la. É aqui que se treinam, e treinavam, falcões e outras aves de rapina para a caça do javali, desporto que, antes, quando o povo era ainda mais povo do que é agora, se destinava a um pequeno grupo da alta-roda. Nota-se, de certa forma, um certo sangue azul na arquitectura da vila, e o facto de ser a menos habitada daquelas onde passei acrescenta-lhe o carácter selecto das ocupações monárquicas. 

Em vez disso sentei-me ao lado de um velhote num dos cafés que ontem entrou fora de horas - onze da noite -, e ele, provavelmente por me ter reconhecido como condutor do GoCar, girou ligeiramente a cabeça na minha direcção e perguntou:

- Então é o senhor que está a dar a volta ao país, não é?

- Sou, sim senhor - respondi-lhe.

- Então e acha que consegue?

- Acho que sim. Se achasse que não nem tinha vindo até aqui.

- Acha que consegue fazer melhor do que os que lá estão?

- Como assim? - na altura não percebi.

- Se acha que faz melhor do que este Governo, rapaz. Não me disse que estava a tentar dar a volta ao país? - e mostrou-me um ligeiro esticar do lábio que se transformou num sorriso, numa de ver se eu percebia o trocadilho.

- Ah! - e ri-me -, essa volta. Essa volta não posso ser só eu a dar. Mas vai ser dada.

- Pois claro que vai, homem. Mas acha que isto vai acabar aqui? - e voltou a girar a cabeça, provavelmente para me dar o sinal de que já tinha dito o que queria.

 

Pinhal - Fajarda

Campos de milho - Fajarda

Quotidiano
Quotidiano - Fajarda

 

Cheguei a Coruche, passando por Fajarda, pelas duas da tarde. Torna-se ligeiramente mais verde, o caminho, com os arrozais já gastos pelo Outono a abrirem horizontes. Pelo meio vêem-se mais florestas de milho e montados. O montado é outro achado na cultura portuguesa, ou da cultura portuguesa mais a sul. São linhas de sobreiros (ou azinhos), alimentadas e organizadas pelo homem, que não só dão a cortiça que nos gabamos de ter, como muitas vezes servem como forte de guarida a outro tipo de árvores mais inflamáveis. A casca do sobreiro tem uma resistência ao fogo inigualável, e uma regeneração ainda mais milagrosa, essa espécie de fénix lusa. 

 

Ermida de Nossa Senhora do Castelo - Coruche


Arrozais e campos de milho da ermida de Nossa Senhora do Castelo - Coruche


Vista da Ponte sobre o Sorraia - Coruche

 

Voltando a Coruche, há roteiro gastronómico no burgo. Em duas horas foram um coelho frito, uma farinheira de sangue com alho e umas tripas de borrego para o bucho. Cheira-me que a cama vem com as galinhas esta noite, da fadiga que me dá este árduo trabalho de comer e beber o dia inteiro. Até ver, experimentei dois dos seis restaurantes da zona que estão alistados na rota - a Tasca, junto à ponte, e o Farnel, o restaurante do Peseiro, no início da vila para quem vem de Salvaterra. Manja-se bem em qualquer um deles. E usar o verbo manjar é intencional porque é mais bem entendido quanto ao quão maciça é a comida. 

Num deles, a Tasca, uma senhora perguntou-me como é que andava no Dinis se chovesse. Antes de responder houve outro senhor que se meteu à frente:

- Ouve lá, tu como é que fazes quando estás de mota? Não apanhas chuva na mesma?

- Pois, realmente não tinha pensado nisso - disse ela.

Poupou-me saliva, o momento.

No outro, o Farnel, houve dança tradicional e pelos vistos não cheguei a tempo de ver bailar o fandango, essa dança de corte ribatejana em que dois homens disputam passos de dança para sacar uma mulher. Este confronto homem-a-homem tem qualquer coisa de milenar nestas ribas do Tejo - o galanteio está presente em todo o corpo desta malta, mas onde se concentra mais é no nervo.

 

Baile no restaurante "A Tasca" - Coruche

Baile no restaurante "O Farnel" - Coruche

 

É dia de pesca. Junto ao rio Sorraia, essa potência fertilizante que dá o tal esverdeado aos campos, encostam-se dezenas de pescadores numa luta desportiva a ver quem bica mais peixe. É um desporto que admiro, e digo isto sem ponta de ironia. Eu próprio já o fiz, várias vezes, mas como desculpa para beber cerveja. Tudo serve se me disserem que lá se bebe cerveja. Já me convenceram a atravessar um rio em maré baixa e lamacento até ao joelho porque supostamente do outro lado estava um bar que vendia cerveja. E olhar para as águas calmas de um afluente a ver se a bóia que sustenta o anzol se mexe parece-me um passatempo perfeitamente adequado e relaxante desde que tenha uma cerveja na mão, uma boina na tola e uma mulher a quem possa dizer, quando chego a casa, que arranjei um cardume para o jantar. 

 

Ponte sobre o Sorraia - Coruche


Farinheira de sangue com alho - Coruche

 

A vila de Coruche é bonita. Lixa-me que esteja praticamente a meia hora de Lisboa e quase ninguém a conheça. Como me fica na garganta que pouca gente se dê ao trabalho de sair da cidade a não ser para ir para o Algarve no querido mês de Agosto. Nasci em Lisboa e dificilmente encontro outra cidade que sinta pulsar tanto na minha pele, mas há vida para além dela, tal como há vida para além da economia. Está ali ao lado. É esticar o braço.

 

À procura do mercado - Coruche

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por Ricardo Braz Frade às 16:57


3 comentários

De Costa a 06.10.2012 às 21:12

És um orgulho Frade. Força! E bom trabalho nesta tua viagem pelo País.

De Ricardo Braz Frade a 07.10.2012 às 23:22

Epá, tanto elogio.

De Gonçalo Meireles a 08.10.2012 às 22:16

Força Ricardo. E que Deus te acompanhe nesta tua viagem, meu filho. Vemo-nos em Guimarães. Ah! Mas só vou ter contigo se me deixares fazer uns piões com o Dinis. Juro que não digo nada ao Mendinhas.

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