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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Terça-feira, 20.11.12

De Guimarães a Braga

Aspecto de casas - Citânia de Briteiros

Casas recontruída - Citania de Briteiros

 

Fui à Citânia de Briteiros pela segunda vez, ali a meio caminho entre Guimarães e Braga. É dos nossos melhores exemplos, pelo menos no que toca à dimensão, da cultura castreja, que se vê repetidamente no nosso norte atlântico, e também em terras do extremo noroeste peninsular, na província galega, quando uma vez na história universal estas duas partes do planeta pertenceram à mesma região, a Gallaecia. O castro que existe em Briteiros encontra paralelo em muitos outros a norte do rio Minho, numa comunhão cultural reconhecível à distância. É daqui que vem este namoro do Entre-Douro-e-Minho com a Galiza, uma novela que não termina por muito que estejam hoje afastados por uma fronteira que gente com coroas de há muitos anos atrás quis aqui fazer. Nem é preciso entrar em polémicas políticas e identitárias. Nunca fui por aí e não vai ser hoje que o vou fazer. Basta que um tipo agarre no volante em Santiago de Compostela e o largue quando chegar ao Porto e percebe, desde que se deixe levar pela carga cultural que há do lado português e do lado galego. É que está lá, à vista mais que desarmada, a partilha da mesma sabedoria. 

A Citânia de Briteiros apresenta as ruínas de uma antiga aldeia que hoje, se calhar, por culpa do Uderzo e do Goscinny, associamos às bandas-desenhadas do Astérix. A verdade é que esta comparação está a léguas de ser disparatada. A aldeia desses livros situa-se na costa ocidental francesa, próxima da pequena península da Bretanha, hoje o último foco absolutamente celta - até na língua, britónica, similar à do País de Gales - da actual faixa oeste de França. Também aí podem ser encontrados testemunhos de antigos castros, tão resistentes à invasão romana como os de cá. E também aí se vivia num regime de comunidade agro-pastoril que já reportei neste espaço como ainda existente em Portugal. É nesta linha que se entende por que se fala, genericamente, nos dias de hoje, de um eixo atlântico, que, apesar das muitas diferenças, mantém uma ligação quase metafísica entre todas as suas partes. São elas Irlanda, Escócia, Gales, Bretanha, Astúrias, Galiza e Portugal.

 

Arcada - Braga

Largo de Santa Cruz - Braga

 

De Braga já se gastou muita tinta. Tem crescido muito, até ao limite da planície que lhe dá chão. É pesada, populosa, cinzenta. Nem os estudantes lhe tiram a sombra. E tão clerical. Deve ser este o sítio em que Portugal soma mais igrejas e capelas e santuários por metro quadrado. Fazendo contas devemos chegar a qualquer coisa como um ponto de oração por habitante. 

É impressionante como se tornou uma cidade à séria, e retomou o seu papel de Bracara Augusta, senhora do Minho, capital da Galécia do sul, dona do império castrejo. 

As mulheres são muito bonitas aqui. Contrastam o irrealizável verde brilhante que têm nos olhos com o esbate do granito triste na fachada das casas. O verdadeiro monumento de Braga é a mulher minhota, uma fantasia que se aproxima das nossas fábulas de moiras encantadas, de cabelo longo e olhos claros, de feiticeira, com um misto de candura e vingança espalmado na cara.

 

Via Sacra no Bom Jesus - Tenões

Escadório dos Cinco Sentidos e das Três Virtudes no Bom Jesus - Tenões

 

Ao Bom Jesus vai-se a pé. Não há cá motores. E se com isto pareço fundamentalista é porque estou mesmo a ser fundamentalista. Se alguém me disser que sim, que foi ao Bom Jesus, mas de carro e depois de elevador, porque estava muito cansado e as pernas pareciam varas, eu respondo-lhe que então não foi. Viu-o, talvez. Tirou-lhe uma sequência anormal de fotos como se de um par de noivos se tratasse, deu meia volta, e ala que já é tarde. Isso não é ir ao Bom Jesus. O Bom Jesus pressupõe um ritual, e começa cá de baixo, a subir estrada até à freguesia de Tenões, onde antes, com quase toda a certeza, já daqui se prestaria culto a outras divindades. Aí chegados, no seu início, é fazer ouvido mouco aos cabos do elevador e galgar cada degrau das escadas que nos está à frente. Todos eles têm o que contar. A riqueza do monumento está no seu todo e não em determinadas partes mais fotogénicas, e convém lembrar que ele começa no piso mais baixo, não a cem metros da igreja. É daí começamos a contar capelas. Cada uma a representar os passos da Via Sacra, da última ceia, à traição de Judas, até à crucificação. Seguimos todos esses episódios num passeio ziguezagueante que não deve ter sido feito assim por mero acaso. Tem muito de iniciático, o percurso, diria que se trata de uma simulação do calvário de Cristo, e escusado será dizer que isso se perde escolhendo a facilidade do ascensor. Uma vez lá em cima, chegamos ao Escadório dos Cinco Sentidos. Por cada dois lanços, damos com uma fonte alusiva aos sentidos - visão, audição, olfacto, paladar e tacto. Todas facilmente reconhecidas. Mais subtil é a mensagem de que se trata de purificar, pela água, aquilo que é sensorial, que é terreno. Porque depois disso chega o Escadório das Virtudes, separado do anterior por um pátio maior. Divide-se em três lanços: o da fé, o da esperança e o da caridade. Aqui, nós, caminhantes, atingimos a plenitude espiritual, que é a verdade absoluta, livre do que se vê, se cheira, se palpa, se saboreia ou se ouve. Chegados ao adro, purificados, estamos prontos a entrar na casa final, a igreja, o encontro com Deus.

Este é o sentido do Bom Jesus, esta ascensão teológica. E nem é preciso ter fé para o percorrer assim. É só ter o mínimo de vontade de o perceber na íntegra. Caso contrário não passa de uma igreja com escadaria para fazer exercício.

 

E agora, já que estamos numa de fé, vou procurar uma Casa do Benfica que passe o jogo de hoje.

 

Escadório dos Cinco Sentidos do Bom Jesus (audição) - Tenões

Escadório dos Cinco Sentidos no Bom Jesus (olfacto) - Tenões

Escadório das Três Virtudes no Bom Jesus (fé) - Tenões

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por Ricardo Braz Frade às 20:25


1 comentário

De Diogo Martins a 21.11.2012 às 01:44

Ahhhh, Bracara Augusta. Outra daquelas que me levanta tanto o querer conhecer aqui o nosso cantinho.

Por lá passarei para o ano a Caminho de Compostela. Para já este ano, reservado para as férias está o Porto :)

Quanto ao Benfica, não sei se foi de teres tido fé ou de o outro também se chamar Jesus, mas aquilo hoje foi baile de boila. E olha, lá o eixo atlântico se juntou mais uma vez hoje ;)

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