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Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.
Castanheiros e castanhas - Algures na Nacional 103
Perto da barragem - Rio Rabaçal
Saí de Vinhais e nos cerca de trinta quilómetros seguintes andei a tomar o pequeno-almoço pelo caminho. Foram as castanhas que ia apanhando que me preencheram a fome, perto do rio Rabaçal. Parava ali e acolá para abrir os ouriços e sacá-las de lá com o cuidado certo para não me picar. As castanhas cruas têm uma textura estranha, de esferovite, e um sabor esquisito mas que se aprende a gostar com a repetição das provas. Num desses momentos aproveitei para deixar o Dinis encostado a um calhau à beira da estrada e resolvi desapertar-me para fazer aquela necessidade elementar que o homem faz de pé e a mulher sentada. O GoCar em estradas de declive mais acentuado, que é o mesmo que dizer em quase todas as do centro e do norte, precisa de um apoio físico relativamente pesado para não começar a descair sozinho rampa abaixo. Provavelmente o problema, digo eu, foi essa parte do relativamente pesado. Tudo o que é relativo está sujeito a interpretação, e a minha deve ter sido a errada porque a pedra que usei como travão da roda de trás não teve arcaboiço suficiente para o peitoral do Dinis. Quando estava a meio do acto que falei acima, vi o Dinis passar por mim, a descer, só por ele, sem ninguém ao volante. Não sei se o meu cérebro conseguiu avisar a minha bexiga para parar o que estava a fazer. Não sei mesmo. O que sei é que nunca corri tão depressa com a minha zona da vergonha completamente nua. No final de umas cinco ou seis pernadas lá o consegui agarrar, como um forcado rabejador faz a um toiro, e inclinei as minhas costelas todas para trás até o contrapeso o obrigar a parar. Só aí, depois do sossego de o ter quieto ao meu lado, dei um aperto ao botão e fechei a braguilha. Ouvi umas risadas ao longe, de gente nova, uns putos de dez ou onze anos. Agi como se o fenómeno fosse perfeitamente normal. Até encenei um bocejo.
Com o Dinis - Algures na Nacional 103
Vista para Oeste - Pedome
É injusto não se falar mais da riqueza cultural de Chaves. Das termas, milenares, mais velhas que o calendário, e que os romanos viram como bom começo para a fixação. Dos castros, testemunhos tribais de um passado celta ou pré-celta. Do centro histórico onde passam peregrinos que aqui pernoitam antes de se fazerem, no dia seguinte, ao Caminho de Santiago, o do interior português, neste caso. Dos prédios, que são extraordinários e têm das melhores combinações que vi com o granito que os segura na base. Do largo Caetano Ferreira, que é uma preciosidade a trezentos e sessenta graus, com ponto alto na Igreja Matriz e na Santa Casa da Misericórdia. Dos fortes de São Neutel e de São Francisco, ambos em estrela, circunscritos por canhões, que disputam o apelido de protector mor. Da Rua de Santa Maria, com bares de paredes tortas e cheiro a bafos de drogas leves. De alguns terraços das casas periféricas com aromas de uva não colhida a tempo da vindima. Do encontro com o Jardim do Bacalhau, com essa escultura particular, que homenageia as mães. E vou parar com a enumeração porque quero falar disto. Quando procurava a dita perguntei onde poderia encontrar uma estátua em que uma mulher segura dois bebés ao colo. Respondeu-me um senhor já nos seus sessenta que essa estátua é a de Maria Mantela. A verdade é que oficialmente não é esse o nome dela, mas foi assim que o irrefutável saber do povo a viu. E percebo por que o fazem. E depois de vos contar a Lenda de Maria Mantela, espero que vocês me dêem razão.
Largo Caetano Ferreira - Chaves
Torre Romana - Lampaça
Junto à Praça de Camões - Chaves
Maria Mantela era a mulher de Fernão Gralho, família abastada deste extremo norte transmontano. Ela engravidou e foi nessa fase que, num dia de passeio com o marido, viu uma pedinte com dois gémeos abraçados ao seu pescoço. Maria Mantela troçou dela por acreditar em antigas superstições que diabolizavam as mães de gémeos, defendendo que quem dava à luz um par de bebés de seguida teria tido comportamentos desonestos. A pobre mulher sentiu a sua honra ofendida e amaldiçoou a gravidez de Maria Mantela, que a partir daí se sentiu mais e mais angustiada à medida que via a sua barriga crescer. Pois tal foi o azar que no dia do parto lhe saíram sete filhos seguidos do corpo. Fernão Gralho não se encontrava presente e Maria Mantela, num acto de desespero, pediu à ama que guardasse um dos rebentos e se desfizesse dos restantes seis e os lançasse ao rio Tâmega. A ama teve de obedecer, e deixando um, carregou os restantes seis, enrolados num pano, até à margem do rio. No caminho encontrou Fernão Gralho, que lhe perguntou o que levava nos braços. A ama respondeu aflitiva que se tratavam de cachorros que teria de deitar ao rio mas Fernão Gralho não se acreditou e destapou o pano, vendo então seis dos seus filhos. A ama acabou por contar o que se tinha passado e Fernão ordenou-a que voltasse para casa e dissesse que tinha cumprido a ordem que lhe fora dada. Assim aconteceu, enquanto Fernão Gralho se deslocou a seis povoados próximos de Chaves e entregou a cada um deles uma das crianças. Anos passaram, sem que Maria Mantela soubesse do que se tinha passado, vivendo assim em eterno arrependimento. Até que no primeiro dia de certo ano, Fernão Gralho resolve dizer à sua mulher que preparasse a noite porque seis convidados viriam jantar. Tal foi feito. À hora combinada chegou Maria Mantela à mesa da refeição e deparou com sete rapazes, cada um mais parecido com o do lado, tão idênticos que Maria não conseguiu apontar qual deles era o filho que criou. Fernão contou-lhe tudo sobre o que se passara, anos atrás, tirando a angústia com que Maria vivera durante tanto tempo. Os sete gémeos viraram padres em adultos, à frente de paróquias bem próximas da cidade de Chaves. Diz-se que na Igreja de Santa Maria Maior se podia antes ler: aqui jaz Maria Mantela, com seus filhos à roda dela.
Que o povo tenha dado um nome diferente à estátua do Jardim do Bacalhau é um óptimo sinal de como ele não se desfaz dessas alegorias da história que são as lendas.
E não consigo dissociar dela a magia do número sete no folclore português. Em Lisboa, temos a Lenda dos Sete Ais. Em Aljubarrota, conhece-se a Lenda da Padeira que dá cabo de sete soldados espanhóis. Nos Açores, a Lenda das Sete Cidades. Monsanto escreve a Lenda da Bezerra, com os seus sete anos de cerco. Tavira lembra a Lenda dos Sete Cavaleiros. Mogadouro vira-se para a Lenda das Sete Senhoras. Mora vai à Lenda dos Sete Irmãos. E há mais, muitas mais. Só é coincidência para quem não se está para chatear.
Maria Mantela - Chaves
Ponte do Trajano vista da Alameda - Chaves
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