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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Terça-feira, 13.11.12

De Vimioso a Bragança

Dinis a caminho de Bragança - Vimioso

Rio Malara - Gimonde

 

Bragança encanta. Tem portadas e ventanas a abrirem para o recorte montanhoso que o Parque do Montesinho faz no céu. Mostra um dos castelos mais bonitos do país. Conta com boa vizinhança, com um Gimonde pitoresco, colado ao rio Malara, a oferecer óptimas postas em restaurantes fotogénicos. Chora uma igreja que desposou o impossível, ao casar D. Pedro com a bela galega Inês de Castro. Tem um centro histórico vibrante e que não nos deixa estar parados. Mas não vou falar dela hoje. Talvez amanhã dedique mais palavras a esta cidade que está bem classificada na minha tabela de preferências. Hoje não. Ou antes, não falarei da cidade em si, mas sim da generalidade do distrito, que tem um sótão de antiguidades enigmáticas. Significa isto que optei por espetar uma valente estucha nos leitores e mostrar-lhes os mistérios da máscara transmontana.

Guardei tudo o que tinha a dizer sobre o assunto para este dia por duas razões. Em primeiro lugar, os rituais que serão abordados são um fenómeno regional, que abarca maioritariamente Bragança e arredores mas também uma parte da Beira-Alta, e como tal, o ideal seria dar-lhes conteúdo numa terra que os representasse a todos o mais possível. Em segundo lugar, é em Bragança que se encontra o Museu da Máscara Ibérica, dentro das muralhas, que vem bem a calhar para ponto de partida do que se segue.

Ainda para mais, os tempos mágicos do início do inverno e do solstício que tem o mesmo nome, já não andam longe. É nessa altura que o nordeste português se transforma e entra num outro universo, flamejante, demoníaco, e hipnótico. Porque é dessas energias que vos vou encher de letras nestes próximos minutos.

 

Intramuros - Bragança

Jardim e muralhas - Bragança

 

São muitos os lugares que se agarram a tradições que remontam a alturas em que Cristo ainda não tinha visto o mundo. Só no distrito de Bragança, dou-vos estas: Rio de Onor, Aveleda, Verga, Baçal, Vila Boa de Ousilhão, Vinhais, Tó, Ousilhão, Constantim, Podence, Bemposta, Bruçó, entre muitas outras. 

Não vou reportar todas. Escolherei apenas três e começo por falar de Tó, terra sobre a qual já gastei tinta e que me ficou feita perfume no cheiro da roupa que uso.

Na altura do natal, em muitas vilas e aldeias dos quatro cantos do país celebra-se a missa do galo, e na mesma noite, antes ou depois da missa, é acendida uma gigante fogueira. Quem vai ao campo passar a quadra, sabe do que falo. E em Tó isso também acontece. Até ver, nada de mais. A diferença é que aqui a fogueira mantém-se acesa durante uma semana, até ao dia de ano novo. Aí, no primeiro dia do ano, logo pela manhã, quatro personagens, mascarados conforme a regra, fazem um peditório a toda a aldeia, na companhia de gaitas e de caixas de percussão: são eles o moço, de fato e gravata; o farandulo, com uma coroa de cartão preto e cara pintada a carvão; a sécia, um rapaz vestido de mulher com um véu de renda na cabeça; e o mordomo. Dá-se então um teatro simbólico: o farandulo tenta uma espécie de violação à sécia, e o moço, em defesa da mulher, simula uma luta com o farandulo, saindo o moço vencedor. Estas personagens criadas e interpretadas pelos aldeões, parecem, sem especular muito, uma representação das estações do ano. O farandulo, de aspecto temeroso, é a encarnação dos tempos escuros, das trevas, ou do inverno, que tenta quebrar a sécia, representante da luz, e sai derrotado. E sai derrotado por que razão? Porque é nesta altura, no solstício de inverno, que o sol retorna e recupera o tempo à noite, isto é, a partir daí, no hemisfério norte, as noites vão minguando até à sua data oposta: o solstício de verão, em junho. Não é por acaso que se chama à missa do dia 25 de Dezembro a missa do galo. O galo é um animal de forte simbologia, que canta quando o sol dá de si. Não é também por acaso que o Natal se chama Natal, o nascer, porque se trata do renascimento dessa estrela que antes foi tida como um Deus, o Sol, mais tarde substituído por uma outra luz, a do nascimento de Jesus Cristo, que nem eu nem ninguém sabe ao certo quando nasceu realmente. 

Vamos agora dar uma vista de olhos a Bemposta. Tem ela o chocalheiro de Bemposta, um ser que mete medo só ao olhar. Não choca dizer que podia ser o carniceiro de um filme de terror. A máscara do chocalheiro inquieta e está carregada de símbolos ligados à fecundidade, onde, mais uma vez, é conivente com a retoma do poder do sol. Ele aparece no dia 25 de Dezembro e no dia 1 de Janeiro, precisamente os dias que mais intensamente se vivem em Tó. Neste caso pode-se até discutir o carácter de demónio que está patente na máscara, um possível catalisador entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos que, crê-se, se encontram por esta altura do ano. A sublinhar a parecença do chocalheiro com o diabo está a aversão que a igreja mostra a este - está proibido de entrar na missa, tendo de esperar que esta acabe cá fora.

 

Farandulo e Sécia - Bragança

Farandulo, à frente, e Sécia, ao fundo  - Tó (fonte: Câmara Municipal de Bragança)

Chocalheiro de Bemposta - Bemposta (fonte: Câmara Municipal de Bragança)

 

Por fim, afastando-me do período natalício, temos os célebres caretos de Podence, que saem às ruas no Carnaval, no Domingo e na Terça-Feira, mais precisamente. Nesses dias, estas criaturas infernais, sempre masculinas, procuram mulheres que, agarrando-as, deverão chocalhar, isto é, num jogo de cintura, atingirem-nas com os chocalhos que têm pendurados no cinto. Na noite de Domingo os caretos podem até perseguir as raparigas, sem qualquer impedimento ou constrangimento moral que os perturbe - e esta é a noite que mais merece a visita, já que a de Terça-Feira começa a sofrer de algumas perturbações turísticas que deturpam a intenção original do rito. Não é preciso estudar muito para nos apercebermos de que se trata de um ritual de fertilidade, coincidente com a fase em que a terra se começa a tornar fértil. Os fatos usados pelos caretos são de linhas paralelas e cores muito fortes, numa alusão ao despertar de um novo ciclo agrícola, de uma entrada - um entrudo - numa nova natureza, a primavera. Este êxtase que se vive pelo regresso ao crescer é visto como uma altura para maximizar os excessos, ou até eliminá-los do mapa. O careto é o exemplo sumo desta realidade sem leis, que conhecemos como Carnaval, já que a eles se dá liberdade total para ultrapassarem qualquer norma social que noutra altura do ano seria severamente punida. Ainda me lembro de, em Lisboa, no festival da máscara ibérica, um apresentador de televisão ficar de trombas com um careto por este ter abandonado a entrevista e resolvido ir tomar banho à fonte do Rossio. Em directo para a televisão, encharcado em água, o careto respondeu à indignação do apresentador: 

- Eu sou um careto e faço o que eu quiser. 

Ora nem mais. Não será Lisboa a fazer a diferença.

 

Careto de Podence - Bragança

Careto de Podence - Podence (Fonte: Câmara Municipal de Bragança)

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Ricardo Braz Frade às 19:58


6 comentários

De helena a 14.11.2012 às 14:53

Simplesmente encantador.

Esta sua viagem é uma autêntica aula de história. Já pensou passar a livro este relato que nos faz?

Um abraço

De Ricardo Braz Frade a 14.11.2012 às 21:40

Obrigado novamente Helena. Já pensei, sim, havendo alguém interessado talvez vá por aí. Se tiver novidades a esse respeito terei todo o gosto em dá-las por cá.

Um abraço.

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