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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Segunda-feira, 12.11.12

De Miranda de l Douro a Vimioso

No Café Rodrigues com o Dinis - Fonte D'Aldeia

 

Voltei atrás, até Fonte D'Aldeia, onde ontem passei de raspão. Está entre Sendim e Miranda do Douro. Falaram-me de uma cerveja artesanal que por lá é feita, numa das várias associações locais. Tive sorte. Encontrei um dos senhores que a faz à beira da estrada que vai para Mogadouro, junto ao Café Rodrigues. Chamava-se Vito e contou-me como andava lixado com a Mercedes por lhe ter gamado as honras do nome. Depois respondeu às minhas intenções de consumo:

- Ela agora está a fermentar, mas tenho lá umas de há dois meses para o senhor provar.

Perguntei se me fazia esse jeito, e para ajudar mostrei-lhe o quanto gostava de uma boa cerveja ao enunciar todas as marcas internacionais que me vieram à cabeça. Funcionou e fui atrás dele, até à fábrica, numa furgoneta. Era uma moradia simples, comprida, de construção relativamente recente. As divisões que vi tinham cada uma a sua função no processo de produção da birra - que se chama Sarti, a propósito -, uma para a fermentação com temperatura nitidamente mais alta, outra com o frigorífico onde está guardado o lúpulo e os frascos de malte por cima dele, uma terceira para o engarrafamento, e finalmente a última com os panfletos promocionais de onde salta o cerbeija artesana em língua mirandesa. Fazem-na de várias formas, preta e ruiva e uma que parecia weiss. Usam vários tipos de malte: trigo, torrado, aromático, chocolate e outros que não decorei.

- Não as podemos vender comercialmente, mas quando há feiras levamo-las. Se calhar vamos começar a tê-la cá pela aldeia nos dias de fim de semana. Isto ainda só tem um ano de vida.

Deu-me a provar de dois tipos - a de cor arruivada, meio turva, boa, e a mais escura, ligeiramente adocicada e a lembrar as maravilhas que os belgas se lembram de fazer com cevada, tão boa que me levou a comprá-la em versão de meio litro.

Despedi-me a dizer que regressava, provavelmente no Verão do próximo ano, e que não me esquecerei de aqui tornar, se calhar já com outras gamas prontas a entornarem-me o estômago.

 

Com o Senhor Vito (primeiro do lado direito) - Fonte D'Aldeia

Cerveja Sarti - Fonte D'Aldeia

 

Fonte D'Aldeia, disseram-me lá, é berço de três dos quatro galanduns. Assim os trato por fazerem parte dos Galandum Galundaina, aquela que é, para mim, a par com os Gaiteiros de Lisboa, a melhor banda nacional. Acreditem que não tenho nada a ganhar com isto e que dou a recomendação pela mais pura magnanimidade: o álbum "Senhor Galandum", o último de estúdio lançado por estes quatro mirandeses, é uma inquestionável obra-prima. Fiquem-se com esta. De resto, vou poupar críticas musicais para outros fazeres.

Quis comer uma posta ao almoço. A ilustre posta do planalto raiano, a posta à mirandesa. Há em quase todos os restaurantes. Em Sendim, onde andei ontem, está aquele que será talvez o mais conhecido: A Gabriela. Era gerido por uma senhora, Gabriela de nome, está claro, que segundo se diz, era o paradigma da mulher do norte, sem papas na língua nem vergonha de mandar qualquer cliente à merda. Ouvi até que Salazar chegou a ir lá comer e a Gabriela não tinha o mínimo problema em mandá-lo à merda também, que ele não era mais que qualquer outro freguês. São as Marias da Fonte que o pedaço do Minho e de Trás-os-Montes fazem nascer. Agora quem lá paira é a sua descendência, sobretudo a neta. Dizem-me que já não é a mesma coisa, que a posta da avó era bem melhor. Não sei. Não tenho a comparação. A actual é deliciosa, gorda, com óptima batata e salada de pimentos a acompanhar, e um molho que escorre sobre ela com uma cadência que ao escrever isto me sinto como o cão de Pavlov. Desta vez deixei a neta da Gabriela em paz. Comi onde estou e onde durmo, em Vimioso. Epicentro do azeite e seus lagares.

 

Praça Eduardo Coelho - Vimoso

Caminho até ao Santuário de Santo Antão - Vimioso

 

Certa paisagem mirandesa faz lembrar a secura alentejana. É um intervalo amarelo torrado num espaço que já há muito tinha ficado na constante do verde, mais ou menos do Fundão para cima. A oliveira, ícone sagrado do mediterrâneo, começa a aferrar-se à moldura natural do nordeste fronteiriço. Estarão aqui, em breve, aldeões com varas e panais, para a apanha da azeitona, que aqui, tal como a da castanha, se faz mais para o final do mês de Novembro. São colheitas tardias, as da azeitona. Das mais tardias que há. Depois dessas, entra-se praticamente no rigoroso e mortiço inverno, que adormece a terra e fecha novos e velhos em casa, deixando-os a viver do que armazenaram para a época. Nas cidades do litoral, a diferença entre o Verão e o Inverno, se exceptuarmos as idas à praia e o volume da roupagem, são pouco mais que pó. Aqui, no interior, quer norte quer sul, anda-se dentro da roda das estações. Vivem-se os ciclos. As pessoas não dizem que é Outono, mas que estão no Outono, porque o Outono faz-lhes mudar os movimentos. O Outono sai com elas de casa e dorme com elas na cama. Faz-lhes os horários, escreve-lhes os deveres e castiga-os à reguada se houver desrespeito. É outra forma de vida. Não me vou armar em moralista e dizer que deveria ser assim em todo o lado. Mas dá-me uma certa inveja não ter esta relação de ódio e de amor com os tiques e enguiços da terra-mãe.

Do miradouro da Atalaia, à entrada sul de Vimioso, vê-se um monte ao fundo, a norte, coberto de neve. Não percebi se eram os tectos do Montesinho, ou se estava mais ao longe, para lá deles, já em território espanhol. Seja como for, os próximos dois dias são naquela direcção, à neve. Há neve.

 

Miradouro da Torre da Atalaia - Vimioso

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por Ricardo Braz Frade às 21:43


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