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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Domingo, 11.11.12

De Mogadouro a Miranda de l Douro

Igreja Matriz - Tó

Antes de almoço - Tó

 

São Martinho foi porreiro no tempo que deu ao magusto. A aldeia de Tó festejava a data na Casa Grande, uma moradia aberta e restaurada que deve contar muita história se as paredes falarem. Parece um antigo palacete e deve sê-lo. Hoje é, e bem, a casa do povo. Houve matança do porco logo pela manhã, que eu não vi por lhe desconhecer a existência. Mas fui a tempo de o ter no prato, num salão de mesas estendidas a todo o comprimento e mais umas que iam chegando mais tarde para dar banco à procura.

- Isto vai ter lugar para toda a gente? - perguntei eu depois de me sentar e perceber que havia gente ainda em pé -, é que se não tiverem eu levanto-me.

- Deixe-se é estar aqui sentado ou ainda perde o lugar - disseram-me do lado esquerdo.

Eu fiquei. Estava com malta porreira, que falava sem medo e sem palpar terreno. Do lado direito, um senhor já mais de idade avisou:

- Olhe que não sai daqui sem comer esse porco todo, hã? - e apontou com a lâmina da faca para o meu prato.

Disse que sim, que comia tudo e só não podia comer o resto porque era osso. Ele voltou a puxar da faca, agora para comprovar se eu o aldrabava ou não. Bateu no porco, num som seco, e disse:

- Pois, isto é só osso, foderam-no bem.

O transmontano não pede licença nas palavras. Ao contrário do alentejano, que é comedido e cuidadoso no que lhe sai da boca, o nortenho tem o palavrão como forma de pontuação. Se existe, é para se usar. Têm toda a razão. Quer escrito, quer dito, dá expressividade. É quase uma arte.

E continuou, sobre Tó:

- Acredite no que lhe digo, pode passar cinco ou seis dias aqui na aldeia que não gasta um cêntimo. Fica aqui connosco que damos casa e pão.

Retomou a conversa o senhor da minha esquerda:

- É. Aqui o único problema é a água, há pouca - depois olhou para o vinho e terminou -, mas também nós quase não a bebemos...

Agradeci e expliquei que não podia ser. Contei-lhes da volta que estava a fazer e que hoje já estava atrasado para ir até Miranda do Douro.

 

O Dinis e os miúdos - Tó

Preparação do porco - Tó

 

Concerto de concertina e cavaquinho - Tó

 

No final do repasto, na eira, esse palanque de espectáculos da vida do campo, deu para ver uma curta achega de bois, que não é mais do que um combate bovino sem homem a meter o bedelho, feito por tradição em terras mais a norte do país, onde talvez a mais conhecida seja a de Montalegre que faz campeonato disso, com playoffs e tudo. Se não me engano, neste caso, eram seis e juntam-nos aos pares para lutarem entre si. Marram e malham um no outro, num cornudo braço de ferro, até que um vire a cara para trás e desista. A primeira foi mansa. Não posso dizer que tenha sido empate porque nem sequer dei conta de uma marrada que fosse. A segunda, a última que assisti antes de partir até Miranda, melhorou. Foi viril. Deu encosto de cornos à séria, e ouviu-se de longe, até, quando chocaram chifre com chifre.

Estas achegas eram, noutros tempos, mais do que uma disputa animal arranjada pela mão do homem. Eram uma bulha de municípios. Cada um tinha o seu boi, criado e alimentado pelo seu povo, e que era depois levado como representante da vila ou da aldeia. O boi, em batalha, carregava mais do que o seu porte. Carregava o peso de todo o vilarejo que representava. O que ganhava dava uma desculpa aos aldeões para que se fizesse festança na terra de onde era original. É fácil fazermos uma analogia com o que acontece presentemente no futebol, em que escolhemos dois ou três tipos com quem contamos para salvarem a honra do convento. No caso da actual selecção nacional, fazemos isso só com um, que vocês sabem quem é, evitando-me o inconveniente de lhe dizer o nome. Podemos dizer que ele, esse tal que estão a pensar, é o nosso boi, porque o vimos crescer e agora queremos que ele não nos deixe ficar mal.

 

Boi para a achega - Tó

Museu da Terra de Miranda - Miranda do Douro

 

Achega de bois - Tó

 

Em Fonte d'Aldeia consegui avistar junto á estrada nacional três burros mirandeses, uma raça autóctone de bom trato, com mais pelo do que o que habitualmente se vê noutros asnos. Corre algum risco de extinção. Têm-se visto umas actividades recentes que tentam salvar esta subespécie de cair num passado irrecuperável. Uma delas é levada em braços por gente como os Galandum Galundaina, uma enorme banda que canta a música tradicional de Miranda e arredores, organizadora de um festival que é também uma caminhada - chama-se, em mirandês, "L burro i l gueiteiro" -, e que percorre caminhos campestres das terras do planalto durante quatro dias. Estou há três anos a tentar combinar fazer estes trilhos. Este ano foi quase, por uma unha negra. Não passa do próximo.

Ando finalmente por burgos onde se diz tenemos em vez de temos. É a língua mirandesa, oficializada há não muito tempo, essa fatia que o Reino de Leão deixou dentro do nosso país e que não de dissolveu nos séculos que passaram desde aí. E pela primeira vez abdico da minha língua-mãe para me aventurar numa descrição fora das minhas capacidades. Desculpem-me se falhar nalguma palavra, e irei, com certeza, falhar.

Miranda i l sou cunceilho bibe sin squecer l sou lado leonés, de l'outra borda de l riu. Ye ua tierra armana, que la frunteira separou an política mas nun cunseguiu an cultura. Qu'estas tierras nunca larguen la sue mimória i la cunten a mimórias feturas. Que ls mius nietos ouçan las buossas gaitas. Que Pertual screba la buossa léngua. I que l praino dure para siempre. Buoltarei.

 

A língua mirandesa - Fonte D'Aldeia ou Fuônte Aldé

 

Burro Mirandês - Fonte D'Aldeia

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por Ricardo Braz Frade às 20:03


1 comentário

De Armando Sena a 23.09.2013 às 17:07

Por um mero acaso, descubro este post, uma maravilha de roteiro, polvilhado de imagens de excelente qualidade.
No meio de uma delas, uma vinha onde já colhi muitas uvas, em Pedome.
Parabéns pelo post e apenas uma pequena correção.
A vista para oeste da tal foto de Pedome, é para Nozelos, a aldeia que se vê ao fundo à direita.
A foto é tirada ao km 190,4 na estrada 103, no cruzamento para Moreiras.

Um abraço,
Armando Sena

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