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Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.
Igreja Matriz - Tó
Antes de almoço - Tó
São Martinho foi porreiro no tempo que deu ao magusto. A aldeia de Tó festejava a data na Casa Grande, uma moradia aberta e restaurada que deve contar muita história se as paredes falarem. Parece um antigo palacete e deve sê-lo. Hoje é, e bem, a casa do povo. Houve matança do porco logo pela manhã, que eu não vi por lhe desconhecer a existência. Mas fui a tempo de o ter no prato, num salão de mesas estendidas a todo o comprimento e mais umas que iam chegando mais tarde para dar banco à procura.
- Isto vai ter lugar para toda a gente? - perguntei eu depois de me sentar e perceber que havia gente ainda em pé -, é que se não tiverem eu levanto-me.
- Deixe-se é estar aqui sentado ou ainda perde o lugar - disseram-me do lado esquerdo.
Eu fiquei. Estava com malta porreira, que falava sem medo e sem palpar terreno. Do lado direito, um senhor já mais de idade avisou:
- Olhe que não sai daqui sem comer esse porco todo, hã? - e apontou com a lâmina da faca para o meu prato.
Disse que sim, que comia tudo e só não podia comer o resto porque era osso. Ele voltou a puxar da faca, agora para comprovar se eu o aldrabava ou não. Bateu no porco, num som seco, e disse:
- Pois, isto é só osso, foderam-no bem.
O transmontano não pede licença nas palavras. Ao contrário do alentejano, que é comedido e cuidadoso no que lhe sai da boca, o nortenho tem o palavrão como forma de pontuação. Se existe, é para se usar. Têm toda a razão. Quer escrito, quer dito, dá expressividade. É quase uma arte.
E continuou, sobre Tó:
- Acredite no que lhe digo, pode passar cinco ou seis dias aqui na aldeia que não gasta um cêntimo. Fica aqui connosco que damos casa e pão.
Retomou a conversa o senhor da minha esquerda:
- É. Aqui o único problema é a água, há pouca - depois olhou para o vinho e terminou -, mas também nós quase não a bebemos...
Agradeci e expliquei que não podia ser. Contei-lhes da volta que estava a fazer e que hoje já estava atrasado para ir até Miranda do Douro.
O Dinis e os miúdos - Tó
Preparação do porco - Tó
No final do repasto, na eira, esse palanque de espectáculos da vida do campo, deu para ver uma curta achega de bois, que não é mais do que um combate bovino sem homem a meter o bedelho, feito por tradição em terras mais a norte do país, onde talvez a mais conhecida seja a de Montalegre que faz campeonato disso, com playoffs e tudo. Se não me engano, neste caso, eram seis e juntam-nos aos pares para lutarem entre si. Marram e malham um no outro, num cornudo braço de ferro, até que um vire a cara para trás e desista. A primeira foi mansa. Não posso dizer que tenha sido empate porque nem sequer dei conta de uma marrada que fosse. A segunda, a última que assisti antes de partir até Miranda, melhorou. Foi viril. Deu encosto de cornos à séria, e ouviu-se de longe, até, quando chocaram chifre com chifre.
Estas achegas eram, noutros tempos, mais do que uma disputa animal arranjada pela mão do homem. Eram uma bulha de municípios. Cada um tinha o seu boi, criado e alimentado pelo seu povo, e que era depois levado como representante da vila ou da aldeia. O boi, em batalha, carregava mais do que o seu porte. Carregava o peso de todo o vilarejo que representava. O que ganhava dava uma desculpa aos aldeões para que se fizesse festança na terra de onde era original. É fácil fazermos uma analogia com o que acontece presentemente no futebol, em que escolhemos dois ou três tipos com quem contamos para salvarem a honra do convento. No caso da actual selecção nacional, fazemos isso só com um, que vocês sabem quem é, evitando-me o inconveniente de lhe dizer o nome. Podemos dizer que ele, esse tal que estão a pensar, é o nosso boi, porque o vimos crescer e agora queremos que ele não nos deixe ficar mal.
Boi para a achega - Tó
Museu da Terra de Miranda - Miranda do Douro
Em Fonte d'Aldeia consegui avistar junto á estrada nacional três burros mirandeses, uma raça autóctone de bom trato, com mais pelo do que o que habitualmente se vê noutros asnos. Corre algum risco de extinção. Têm-se visto umas actividades recentes que tentam salvar esta subespécie de cair num passado irrecuperável. Uma delas é levada em braços por gente como os Galandum Galundaina, uma enorme banda que canta a música tradicional de Miranda e arredores, organizadora de um festival que é também uma caminhada - chama-se, em mirandês, "L burro i l gueiteiro" -, e que percorre caminhos campestres das terras do planalto durante quatro dias. Estou há três anos a tentar combinar fazer estes trilhos. Este ano foi quase, por uma unha negra. Não passa do próximo.
Ando finalmente por burgos onde se diz tenemos em vez de temos. É a língua mirandesa, oficializada há não muito tempo, essa fatia que o Reino de Leão deixou dentro do nosso país e que não de dissolveu nos séculos que passaram desde aí. E pela primeira vez abdico da minha língua-mãe para me aventurar numa descrição fora das minhas capacidades. Desculpem-me se falhar nalguma palavra, e irei, com certeza, falhar.
Miranda i l sou cunceilho bibe sin squecer l sou lado leonés, de l'outra borda de l riu. Ye ua tierra armana, que la frunteira separou an política mas nun cunseguiu an cultura. Qu'estas tierras nunca larguen la sue mimória i la cunten a mimórias feturas. Que ls mius nietos ouçan las buossas gaitas. Que Pertual screba la buossa léngua. I que l praino dure para siempre. Buoltarei.
A língua mirandesa - Fonte D'Aldeia ou Fuônte Aldé
Burro Mirandês - Fonte D'Aldeia
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