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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Quarta-feira, 07.11.12

De Celorico da Beira à Guarda

Até à Guarda - Chãos

 

Uma boa forma de distinguir as terras do sul das terras do norte é o tempo de demora que vai desde que deixamos uma vila e encontramos outra. Abaixo do Tejo, e ainda mais abaixo do Sado, podemos estar quarenta quilómetros sem encontrar vivalma. São os latifúndios que tomam conta da paisagem. Um conjunto de planos que podiam ter sido gamados a uma produtora de filmes western de Los Angeles. Por vezes, e eu bem o senti no moinho que me alimenta a criatividade, o difícil é arranjar sobre o que escrever. Quando o GPS se aproxima da Galiza - para que conste, eu não uso GPS, é só uma forma de relatar a coisa -, as aldeias encostam-se, ou confundem-se em certos casos, e de uma paragem a outra vão cinco minutos. O norte é apertado, em montanhas acanhadas e casarios que se encaixam como podem. O sul é amplo e disperso, um largo tabuleiro sem pressa de impedir o que quer que seja. 

De Celorico até à Guarda é começar pelos dedos de uma mão e acabar com os da outra: Ratoeira, Lajeosa, Porto da Carne, Cavadoude, Ramalhosa, Faia vê-se ao longe abrigada num monte, Pêro Soares, Chãos, Prado, Cubo. Num espaço de vinte e sete quilómetros, a Beira-Alta deu-me mais terras do que eu tive entre Almodôvar e Portalegre.

 

Igreja da Misericórdia - Guarda

Sé - Guarda

 

A Guarda a partir de Outubro é um frigorífico que pode, dependendo dos desígnios dos céus, virar congelador. Estavam zero graus na zona velha, e a temperatura que sentimos a bater na pele, que é a que realmente conta, ia aos quatro negativos. Até a chuva vinha gelada, e voava em vez de cair, já entre o aguaceiro e o nevãozinho. O nevoeiro era tão espesso que no adro nem dei pela Sé, que é gigante, enorme, ocupa-lhe o espaço todo. A Torre de Menagem vai acima dos mil metros e só a fisgamos se nos dermos ao trabalho de desfazer umas dezenas de nuvens até lá. Mas ainda bem. Na Guarda, assim como está, ainda bem

A Guarda anda ao revés da natureza. É a partir do Outono que floresce, e no Inverno entra em esplendor, carregada de cinzento até quase virar preto. Ninguém a quer solarenga. Quem olha para a catedral, gótica até à medula, rija de pedra, robusta que nem um castelo, violenta até, a atirar demónios medonhos e corpulentos das paredes para fora, não pode deixar de sentir um arrepio místico a correr-lhe as costas. E se não o sente é porque não sente, realmente. 

Mais escondida do que as habituais gárgulas que saem da parede norte e da parede sul, está uma que lhe é particular: o Cu da Guarda. Está bem coberto, e sobretudo com bruma é difícil dar-se com ele. Tive de perguntar:

- Desculpe, sabe-me dizer onde está esculpido o… - e hesito -, bem, um rabo que funcion…

- O Cu da Guarda?

- Sim, exacto, o Cu da Guarda.

- Venha comigo.

Passei para o outro lado, a sul e apontou-me para umas escadas de ferro que sobem até ao telhado.

- Vê as escadas?

- Vejo, sim.

- Quase no cimo, ali ao canto, não vê?

Vi. Assim que o topamos uma vez não dá para não lhe pôr os olhos em cima sempre que repetimos a passagem.

É um cu, de verdade, ou se preferirem, um rabo, ao léu, que serve os mesmo propósitos das gárgulas convencionais: escoar as águas das chuvas. Mas aqui, em vez de sair pela boca do mostrengo, como acontece quase sempre, sai por um ânus, por um furo feito entre duas nádegas lá esculpidas. O Cu da Guarda tem dois sentidos possíveis. Um é comum a várias teses sobre o fenómeno das gárgulas na europa medieval que visa contrastar o belo religioso que se encontra dentro das igrejas, com o feio e demoníaco que vive cá fora. O outro é a função pedagógica ou, neste caso, provocante, já que o dito cu, ou rabo, está a apontar para Espanha, numa atitude que tem um pouco de desafiante e muito de escárnio. Mais um sinal, a juntar ao que falei em Monsanto, do quanto esta gente raiana gosta de picar o vizinho.

 

Praça Velha - Guarda

Zona velha - Guarda

 

Esta é a semana do caloiro. Capas negras a pairarem como asas de corvo ficam bem no negrume do bairro antigo e da praça velha. No túnel da Torre dos Ferreiros, abrigados de parte da chuva, já vejo estudantes a conversarem sobre onde ir. Junto à Judiaria há mais uns quantos. Procuram cerveja, acho, que lhes aqueça a noite. Alinho no mesmo. Provavelmente vou à aguardente, que me queima o avesso da pele. Já me convidaram para uma festa universitária qualquer. Que calorosos ficam os rapazes da Guarda quando a Guarda os põe a tremer de frio.

 

O Cu da Guarda, ou o que o nevoeiro permite ver dele - Guarda

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por Ricardo Braz Frade às 19:17


4 comentários

De emanueldylancaetano@gmail.com a 08.11.2012 às 17:38

Brr, que frio, mas é uma zona encantadora. Desculpe mas não consigo ver o cu!...
As terras do norte são mais "aconchegadas" talvez devido ao relevo, mais diversificado

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