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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Segunda-feira, 05.11.12

De Loriga a Gouveia

Igreja e vale - Valezim

Pequena cascata - Lapa dos Dinheiros

 

Loriga deixa-nos a ver as grandes altitudes pelo retrovisor. Daqui a Seia é distância curta, e praticamente a descer. O coração da Estrela fica à direita. Quando a serra nos dá uma vaga de relevo suficientemente alta, à esquerda consegue-se ver o outro grande monte Beirão, o Caramulo. 

Já tinha lido sobre isto, mas pus a leitura em experiência nestes últimos dias: há um detalhe na Estrela que se revela mais do que isso se aprofundarmos a questão, e que tem a ver com as várias faces da Estrela, dando origem a uma múltipla personalidade que à primeira vista não se revela. A encosta sul vive praticamente de costas para a encosta norte. Enquanto mais abaixo os vilarejos preferem olhar para cidades meridionais, como a Covilhã ou mesmo Castelo Branco, mais acima as aldeolas procuram pé em cidades setentrionais. A monstruosidade da serra e o trabalho que dá atravessá-la de um ponto cardeal ao seu oposto, é a mais provável justificação. Mas nem só de norte-sul vive a ambiguidade da Estrela. Também de leste a oeste damos com ela. O lado ocidental, pelo qual resolvi vir, deixa-me virado para o poente, para a fronteira atlântica, abafada pela gigantesca silhueta da Serra do Caramulo. Do outro lado, a oriente, em direcção a Belmonte, roçamos a outra raia, a Espanhola, ou a Castelhana se forem de especificações. Entre uma e outra há marcadas diferenças, dos trajes, às expressões, às gentes. Mas neste momento, dada a escolha, só poderei falar daqui, de onde estou, de Valezim e da Lapa dos Dinheiros.

 

Miradouro - Lapa dos Dinheiros


 

Casa de Dom Dinis - Lapa dos Dinheiros

 

Os ribeiros vão pautando o asfalto e as curvas dão-lhes umas vírgulas apertadas. Valezim encontra-se sem se procurar. Pareceu-me viver da pastorícia, como tantas outras daqui, muitas delas amortecidas pelo declínio industrial, normalmente associado ao têxtil. Cantam-se mais ovelhas que cabras e contam-se mais cabras que homens. Dão juntos a matéria para aquela pérola gastronómica que qualquer gente de bom gosto se baba ao comer, chamada queijo de Seia. As transumâncias dos pastores passam certamente por aqui, quando a neve do Inverno brinda as terras altas e dificulta a alimentação do gado.

Mais à frente, e aqui sim fui obrigado a um pequeno desvio, vem Lapa dos Dinheiros. Que bons anfitriões tem a vila. Ofereceram-me uma mão cheia de castanhas e um cacho de uvas. Quase à força. 

- Coma menino, coma-as - e se viam que me esquecia delas enquanto procurava indicações, voltavam a lembrar, com mais afinco -, coma as uvas menino, coma as uvas, porra.

A vila ganha nova perspectiva quando lhe ouvimos a lenda que lhe deu nome. Baseia-se em D. Dinis, que cá vinha caçar - há um padrão de azulejos que mostra isso mesmo -, e que numa noite ficou aqui preso por causa de um nevão inesperado. Os aldeões abrigaram-no numa casa que ainda hoje é conhecida como casa da Lapa, ou casa de D. Dinis. O rei foi recebido que nem um rei, com festa grossa e um jantar de bezerro. Sem presunção, fui também hoje aceite como monarca. Fiquei com a ideia que se puxasse por eles davam-me cama, água quente e pequeno-almoço.

No cimo da Lapa e a finalizar um miradouro, para quem tiver pernas, há uma miniatura do Cristo Rei, de braços abertos a envolver a povoação toda, tal e qual como em Lisboa. Parece abençoar a vila. Até agora tem resultado.

 

Capela da Nossa Senhora do Amparo - Lapa dos Dinheiros

Estrada principal - São Romão

 

Depois de São Romão e Seia, encostados ombro a ombro, lavados de urbanismo, uns vinte quilómetros para norte, há Gouveia. É-me complicado falar de Gouveia. Uma costela que o meu Pai me deu é de lá. Visitei raízes, e tantas. Foi preciso vê-las para que as reactivasse na memória. Uma antiga quinta de avós e bisavós meus, de um avô bem lembrado pela terra e de uma avó que me cora quando ouço gouveienses a jurarem que era a mulher mais bonita da Beira. Lembro-me de passar aqui noites, nesta casa, em pretéritos que vão longe e que me recordam das primeiras vezes que toquei na imaculada cor da neve, com quatro ou cinco anos. De um trenó encarnado, com duas alavancas de plástico preto, uma à esquerda e outra à direita, que fincavam a neve e faziam-no virar para o lado contrário àquele em que mexia. Desde aí que o vício se colou ao corpo e um ano mau é um ano sem mirar um nevão. Se ele não vier ter comigo, tento sempre ser eu a ir ter com ele. 

Como qualquer lisboeta que se preze, não tenho passado alfacinha. Metade do meu viveu aqui, neste centro-norte português, que já é norte no sangue. Porque o norte começa abaixo do que o norte realmente começa. Ao contrário do que essa secretária burocrática que é a geografia manda, o norte cheira-se no ar, não se vinca num mapa. A Beira-Alta onde estou é norte. Já se começa a dizer fino em vez de imperial, por isso é-o com todas as letras, venham-me lá com as cartografias que quiserem.

E Gouveia para mim é isto, que é tão à frente do lugar que ela deixou na história. Não consigo falar dela sem ser comigo lá. Lamento.

Acabei a tarde com o senhor que me abriu os portões da quinta, com umas chaves que a minha tia avó lhe deu. Eu a falar-lhe do que não esqueci daqui, ele a dizer-me como tem cuidado, como pode, da casa, a par com o meu tio que cá vive. Vê-la assim, a ganhar o tom da chuva, entristece. Entristece-me. E mesmo assim houve uma acendalha a arder quando voltei a pisar a madeira do corredor que me leva à sala, e a ver a fotografia do casamento dos meus avós, por cima da lareira. Que bonita que ela era, a avó. Faz corar.

 

Recordações - Gouveia

Igreja Matriz - Gouveia

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por Ricardo Braz Frade às 21:49


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