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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Quinta-feira, 29.11.12

Da Lousã a Coimbra

Castelo e Santuário à Nossa Senhora da Piedade - Lousã

Entrada no Santuário da Nossa Senhora da Piedade - Lousã

 

Há muito castelo no país, e sobretudo se o registo for o de conhecer um sítio por dia, eles passam para nuvens na paisagem, como um eucalipto ou um carvalho ou uma oliveira. No alentejo, na linha fronteiriça, isto é ainda mais verdade. Cada vilarejo, por mais pequeno e perdido que esteja, leva uma fortificação num morro lá próximo, como lojas de fast food nas urbes americanas. Mas onde dormir, na Lousã, o castelo ganha outra propriedade. Mais que isso. Ganha todo e qualquer esforço que se faça para o ir ver. Está tapado pela parte moderna e antiga da vila, e enfia-se mesmo à entrada da serra, numa de proteger a irmã mais velha, Coimbra, de antigos ataques sarracenos que foram a constante do século XII. Logo ali ao lado, na outra margem da ribeira de São João, a findar um monte de menor altitude, mora o Santuário de Nossa Senhora da Piedade, que certifica aquele enclave com tudo o que se pode entender como religioso, e olhem que não falo só do significado que a igreja lhe dá. É marcado por um arco, em xisto, e um aviso picado na pedra do lado esquerdo: daqui para além, irá pisar lugar sagrado. Além, entenda-se, é para lá do arco, que parece aqui marcar uma passagem de dimensão. A praia fluvial que foi montada junto ao rio deve ter iniciado uma série de passeios em fato de banho pelo santuário acima porque na mesma pedra, mais abaixo, podemos ler seja regrado no vestir; no falar; no gesticular; no comer e no beber. Não há grande dúvida que se quer fazer do grupo de capelas que ali se juntam um pequeno jardim solene. E bem. Está ali uma boa parte dos segredos do país. Vive aqui, neste castelo, e desde sempre, o desgosto da Princesa Peralta.

 

A Fonte da Vida - Lousã

Ribeira de São João - Lousã

 

Mais uma vez se comprova que qualquer sítio do país que tenha um culto associado, hoje cristão, antigamente pagão, e sempre acompanhado de lendas e mitos, criados e recriados pela sabedoria de um povo que nasceu com ele nos pés, é bonito. É bonito nem que seja pela contemplação, à falta da estética. O castelo e santuário que põem Lousã, as suas aldeias, e a sua serra, como obrigatórias, estão cobertos de lendas misteriosas que vêm ao de cima quando os olhamos, juntos, em par, mesmo sem lhes saber uma linha do folclore que lhes está por trás. Se olharmos com olhos de fábula para este quadro bucólico, percebemos por que razão ainda o povo acredita na magia das coisas e no que está para lá da matéria. Diz-se que se ouve, de quando em vez, o chorar da Princesa Peralta, em luto pela morte do seu amado Lausus - Lausus, que viria a originar Lousã -, e que no castelo ainda se escondem os seus tesouros. Acho, mais uma vez, que a lenda mais não é mais do que uma frequente readaptação de antigas crenças, anteriores ao cristianismo, e que já lembrei noutros textos: as das mouras encantadas. Estes cultos são periodicamente actualizados conforte a realidade que a história vai oferecendo aos séculos. Seja a guerra entre cristãos e mouros, entre portugueses e espanhóis, entre ibéricos e franceses, as moiras encantadas são um caso de estudo em Portugal, e uma constante nos nossos livros de contos. Podem estar disfarçadas de milhentas formas, mas se lhes tirarmos a roupa toda e deixarmos apenas osso, encontramo-las, sempre numa presença divina, de fada, tão belas que enfeitiçam, com boas doses de bondade e vingança, prontas a usar qualquer uma delas conforme a abordagem de quem tenha a dúbia felicidade de as ver.

 

Paços da Universidade - Coimbra

Escadas de Minerva - Coimbra

 

É difícil ter Coimbra à frente e pô-la em papel. Não só por tudo o que há para dizer, que dava uma colecção de três volumes com envergadura bíblica, mas porque Coimbra não se deixa conhecer assim. Seria preciso namorar com uma estudante da área de humanidades, e acompanhá-la diariamente na subida à Faculdade de Letras, na Alta da cidade, para perceber como é ser jovem por cá. Seria preciso beber shots sem fim, a esquecer a ressaca da manhã, e a do amanhã, e a do depois de amanhã, e deixar que o álcool me tirasse forças, e sentir essa irresponsabilidade estudantil que Coimbra, mais que qualquer outra, ensina, como se fosse cadeira obrigatória. Seria preciso vestir-me de preto e roçar-me no meio de capas negras e cantos de praxe, para entender todo este ritual até ao último ponto da última página. Seria preciso ver que a espinha afinal sempre pode arrepiar quando a ópera do Fado de Coimbra se faz tocar em serenatas dedicadas à meta máxima de qualquer homem: a mulher. Seria preciso perceber o que são estes cantos, estas torres, estes arcos e estes nomes, que me causam dúvida e estranheza, como a misteriosa Via Latina, ou as escadas dedicadas a Minerva, por onde qualquer pessoa sobe e desce sem se aperceber disso. Seria preciso mais do que ouvir os três sinos da torre universitária, o da cabra, o cabrão, e o balão, cada um com o seu significado, cada um com o seu sentimento, e teria de sentir o toque da cabra a alterar-me os trejeitos ao mandar-me para as aulas, para o almoço, ou para casa. Seria preciso fazer piscinas entre a Baixa e a Alta, a primeira em que estudantes são doutores, a segunda em que mandam comerciantes, e perceber como duas zonas de uma só cidade podem ser tão desiguais que justificariam declarações de independência de qualquer uma das partes. Seria preciso cá comer, cá guiar, cá dormir e cá acordar.

Seria preciso cá viver.

Como sempre quis fazer.

 

Arco de Almedina - Coimbra

Porta Férrea - Coimbra

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por Ricardo Braz Frade às 20:03


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