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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Sábado, 17.11.12

De Montalegre a Vieira do Minho

Saudações - Parque Nacional da Peneda Gerês

Gado - Sirvozelo

 

Ontem não falei tudo o que quis sobre este Montalegre. Mesmo com o que vou dizer hoje, continuo sem falar tudo o que queria sobre este Montalegre. Há uma pequena tradição na vila que tem reunido adeptos e ganho viço com os anos. Está ligada à horrífica Sexta-Feira 13, no seu lado supersticioso, associado ao azar, e no seu lado lendário, referente a maus olhados e bruxarias tão em voga no concelho. É comum, pelo menos na cultura ocidental, referirmos a coincidência do 13 e da Sexta-Feira como uma data maldita. Há quem diga que esta crença tem barbas de velhice, e que vem desde o tempo em que antigas feiticeiras foram descriminadas como bruxas no início do cristianismo e que se passaram a encontrar às Sextas para preparar vinganças no destino dos que as condenaram. Montalegre crê que é na ponte de Misarela que esta reunião acontece, e trata esta data como se de um Halloween se tratasse. No centro histórico perguntei se ainda haveria este ano alguma Sexta-Feira 13 que pudesse vir cá fotografar:

- Este ano não. Só para o ano e é em Setembro e Dezembro. Até lá, nada. Tivemos uma em Junho.

E continuou. Falou-me do que se conta por aí, de que a sétima filha de um casal é sempre bruxa, e que se sair rapaz então é lobisomem. Disse-me ainda como, nessas Sextas em que o 13 nos mete medo, se afogam os maus espíritos com a queimada galega, uma bebida típica da Galiza que se instalou também no norte de Portugal, feita à base de aguardente e na qual se podem juntar casca de limão e maçã, grãos de café, açúcar, e enfim, o que o seu inventor quiser para lhe apurar o gosto. A queimada, contudo, não se faz só do verbo beber. Obedece a um ritual que envolve mais do que isso. Depois de a atearmos e a vermos arder mais alta que fogueiras, mas antes da tentação de a mandarmos goela abaixo, é solto um esconjuro que afasta os maus prenúncios e a bruxaria. Quando a sentimos chegar ao estômago, o líquido deverá purificar o corpo e proteger-nos de qualquer mal que nos possa vir a cumprimentar.

Montalegre é este eterno argumento de filme de terror de série b, e com isto faço-lhe um enorme elogio. A vida não é só razão e estando aqui percebemos - e queremos - esta vivência de celestial fantasia pagã.

Quando acordei, durante a manhã, pensei na tal ponte de Misarela que me tinham falado, um altar místico onde os montalegrinos crêem que as bruxas se juntam a conspirar. Não sei como, mas hei-de lá ir hoje. E sentei-me no Dinis.

 

Vista da aldeia - Sirvozelo

Rua e espigueiro - Sirvozelo

 

Até à ponte de Misarela passamos pelo esplendor do lado leste do Gerês, o que ainda tem transmontano no nome. O Gerês é uma explosão de beleza que Trás-os-Montes e Minho pariram da terra, em comunhão, de mãos dadas e olhos postos na Galiza. Não há centímetro que não mereça ser apreciado. Deverei aqui passear amanhã, novamente, e guardarei parágrafos para essa altura. Neste momento vou voltar a umas palavras ali de trás. Às da ponte de Misarela, que é tão bela. Daí se recita mais uma lenda. Era o Diabo que controlava aquela passagem sobre o rio Rabagão e apenas dava a ponte a quem lhe vendesse a alma em troca. Isto durou até ao dia em que um padre a exorcizou com água benta, e daí se cristalizou, tendo o Diabo feito malas e desaparecido. Faz sentido que, existindo esta tradição oral em relação à ponte, os locais de Montalegre a vejam como um assento de bruxaria. Aparte disso, não será o imaginário que o povo faz dela que lhe tira a formosura. À medida que descemos um trilho pedestre íngreme, apoiados a qualquer rocha segura que haja à boca da mão para não sermos enganados no musgo escorregadio, sentimo-la a engrandecer. E quando vem aos nossos pés, e estamos sós, nós e ela, dá vontade de a aplaudir. Faz-se numa peça de perfeito encaixe, de estética meio gótica, a arquear sobre um ordem de pedra e água. Damos-lhe cinco minutos de atenção e sentimos um comprimido calmante a fazer efeito. E é deixar adormecer.

 

Capela de Santa Luzia - Cela

Ponte de Misarela - Misarela

 

Deu-me a despedida que precisava, Misarela. Não tarda, daqui a poucos metros, acaba o concelho de Montalegre e acabam as terras transmontanas. Viro-me para trás e lá está ele bem maior do que aquilo que vejo. Aqui vai uma vénia, Trás-os-Montes, e um profundo profundíssimo obrigado. Tens um tamanho que não cabe no mundo.

Deixei-me inundar destas chuvas, destes saberes e destas gentes. Saio daqui a achar-me um deles. Nascido transmontano. 

Venha o Minho.

 

Rio Cabril - Cabril

Na estrada - Parque Nacional da Peneda Gerês

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Ricardo Braz Frade às 20:55


8 comentários

De Diogo Martins a 18.11.2012 às 02:40

Mais uma etapa "vencida". É de facto interessante percorrer o país e ver-mos a diferenciação que as pessoas fazem sobre as lendas, mitos e factos que acabaram por criar as nossas tradições, e nalgumas inclusive, a nossa história.

Quanto à Queimada posso afirmar algo fidedigno. Não sei se limpa o espírito ou não, mas da primeira vez que fui ao teu "tasco", tudo o que era pelinho neste corpo arrepiou-se.

Abraço ;)

De Helena a 18.11.2012 às 13:04

As paisagens são de encantar.

Um abraço

De Casa Cabrilho a 18.11.2012 às 17:09

Boa tarde Sr. Ricardo Braz
Tenho acompanhado desde ontem, quando deixou Lapela de Cabril no Dinis.
Foi uma pena o Senhor não ter dado conta que esteve na casa Cabrilho... casa do navegador Cabrilho que descobriu a Costa da California... seria uma nota importante para o seu blog e sua aventura. foi pena!!! continuarei acompanhar a sua viagem.

Celestina Falcão.

De Ricardo Braz Frade a 18.11.2012 às 20:52

Cara Celestina,

Não só dei conta como lá me abriguei e tirei fotografias, que foram publicadas no Sapo, só não o foram no blog. A verdade é que muitas vezes tenho de seleccionar partes de textos a colocar online - por questões de estrutura dos posts, que não quero demasiado longos -, e se há dias em que posso meter tudo, outros há que tenho cortes a fazer.

Posso-lhe garantir que, saindo um livro, tudo será dito, inclusivamente sobre a acolhedora Casa Cabrilho que me deu singevergas com limão.

Um abraço.

De Casa cabrilho a 20.11.2012 às 19:40

ok, quando o livro for publicado avise-me... a bebida que bebeu foi servida pelo o meu filho Renan... ficou contente por você comentar!
ficamos aqui a acompanhar o seu passeio.
Celestina

De Ricardo Braz Frade a 20.11.2012 às 20:22

Claro que sim. Será avisada.

Um abraço.

De Anónimo a 19.11.2012 às 00:30

Excelente crónica, mais uma vez.

Uma questão: o rio zêzere não nasce na serra da estrela?
Não pode ser esse rio na fotografia.

De Ricardo Braz Frade a 19.11.2012 às 01:40

Toda a razão. Emendado.

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