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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Sábado, 10.11.12

De Freixo de Espada à Cinta a Mogadouro

Vista do Planalto - Lagoaça

Igreja Matriz - Mogadouro

 

- Aqui está bom, dá para estarmos só assim, de camisa. Lá para cima no planalto é que é pior.

Falava do tempo, um dos rapazes com quem conversei ontem, ao final da noite. Confirmei-lhe as palavras assim que saí, pela manhã, de Freixo de Espada à Cinta e galguei as subidas, sinuosas, até ao encanto eterno do planalto mirandês. Estou na parte sul, ainda antes de começarem as terras da língua mirandesa. A leste desse monte secular que é a Serra do Marão.

É um chavão que repeti muitas vezes pela vida fora, o tal que verseja que para lá do marão, mandam os que lá estão. Como qualquer cliché, é repetido até à exaustão, mas não fica menos verdade por causa disso. Acho-o uma expressão maravilhosa, uma ode ao feitio torcido e autónomo do transmontano. Resume a idiossincrasia desta gente, numa tradução leiga que pode ser a seguinte: ó tu que vens de fora, eu não te conheço e não preciso que me ensines a tomar conta de mim próprio. Trata-se de uma filosofia que lhes vem como um sinal de nascença, uma tatuagem que não sai. Uma espécie de condição não pensada mas colectivamente sentida. O homem de Trás-os-Montes tem de ser aceite nestes termos, porque se ele cede nisso então deixa de ser transmontano. A parte boa, é que se o fizermos, se lhe dermos com essa humildade, e eles merecem-na, vão ver que ele traz um exército de candura a sair-lhe do coração. 

 

Junto à Rua do Castelo - Mogadouro

Interior de Adega - Mogadouro

 

Estou em casa de uma família de um amigo daqui, a quem estou muito grato. Há uma coisa que se leva a mal numa casa mirandesa: que um tipo convidado não se sinta à vontade. Isso, parece-me, é dos poucos comportamentos a que se torce o nariz. Já trago presunto de porco de Sendim no bucho, com pão caseiro e azeitonas a acompanhar. E um óptimo vinho que sabia mesmo a uva. Isto não é redundância. Um vinho saber mesmo a uva tem de ser falado e gabado. Hoje ouço falar de vinhos com sabor a chocolate e a espargos e a frutos do bosque e a frutos exóticos e ao raio a quatro. No meio de tanto aroma, a uva entra num labirinto do paladar que me é difícil topá-la na língua. Este, repito, era vinho com todas as letras: sabia ao que tem mais de saber, a uva.

Entre castanhas e licores, falei muito sobre Mogadouro. Do castelo. Da judiaria e de uma cruz inquisitória numa pedra a indicar o preconceito: a casa de critãos-novos, os que se converteram à lei da bala. E da família dos Távoras, presente em moradias nobres da zona antiga. E do Convento de São Francisco. E da Capela de Santa Ana onde se fazem festas anuais de entrada exclusiva a solteiros. E de aldeias abandonadas ou quase, como Santo André, aqui ao lado. E das máscaras, símbolos de paganismos arcaicos que falarei mais tarde. E do Trindade Coelho, escritor mogadourense, que tem uma fraga na ponta da vila, que lhe aviva a memória e se diz ter sido por si usada como cadeira onde se sentava à caça de inspiração. E de recolhas musicais, divididas entre Mogadouro e Miranda do Douro, que competem entre si, num salutar campeonato do cancioneiro mirandês. E da língua mirandesa, que aqui, como disse, ainda não invade o léxico, mas um pouco mais adiante, em direcção à raia, já lhe tomamos o gosto. E do azeite, que é do melhor do mundo, talvez empatado com o da Grécia. E do , uma interjeição muito própria dos falares de Mogadouro, que pode servir como exclamação, como interrogação, como adjectivo, como vírgula e como ponto.

 

Castelo - Mogadouro

Eu, o Víctor e o Dinis - Mogadouro

Castanhas de São Martinho - Mogadouro

 

E dos gaiteiros. O Victor, que tão bem me recebeu, e que também toca, disse-me que antes, aqui no planalto, havia dois ou três gaiteiros, já velhos. 

- Agora - continuou ele -, um tipo dá um pontapé numa pedra e sai de lá um. Há gaiteiros em todo o lado.

- Melhor assim - disse eu -, melhor a mais que a menos.

É bom ver que há novo fulgor na música tradicional, e não falo só do nordeste português. Há cerca de vinte anos começaram a aparecer bandas de novas gerações que têm molhado de criatividade a contínua secura da tradição oral em Portugal. Aqui, a flauta de tamborileiro tem crescido e ganho uma vida que parecia em sentido único para a morte. A gaita-de-fole mirandesa resplandece novamente nos vilarejos, com as suas alvoradas e os seus redondos, tocadas nessa estridente e desafinada força da natureza. Sabe bem ver que as eiras voltam a ser palco de baile e folia a rodos, que também é para isso que a terra serve.

- No Verão, as gaitadas aparecem dia-sim-dia-sim - voltou o Víctor.

Óptimo. Só é pena que no Inverno ela fique a repousar. Amanhã é dia de festa. É o magusto. E vou correr mato à procura de uma gaitada que me mexa os membros sem que eu me aperceba.

Pus a tagarelice em dia no que toca a música. Ainda deu para conhecer uma banda que me transbordou as medidas: os Curinga. Já que estamos em sede própria, vou deixar a versão que fizeram dessa canção de guerra que é o Redondo. Mataremos um carneiro e os cornos são para vós. Bô!

 

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por Ricardo Braz Frade às 23:55


1 comentário

De João Vicente a 20.11.2012 às 15:32

O vídeo promocional da revista Bô!, é um bom exemplo da utilidade da expressão.

http://www.youtube.com/watch?v=7dLn_7shEF0

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