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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.



Sexta-feira, 09.11.12

De Almeida a Freixo de Espada À Cinta

Igreja Matriz - Figueira de Castelo Rodrigo

 

Adormeci num quartel de bombeiros antigo, sem ninguém, com três andares, torneiras que tremiam até verterem água castanha e portas que rangiam. O Carpenter, se o visse, gravava-lhe um filme de terror. Acabei por dormir bem, num colchão velho mas limpo, isolado a meio de uma sala fria e de paredes e tecto brancos, sem adornos. 

Deixei hoje a Beira-Alta, ou como alguns geeks do que é tradicional lhe chamam, a Beira Transmontana, dada a estreita afinidade que existe do que está para cá e para lá do rio. Há ainda quem trate este pedaço de vida do interior abaixo de Trás-os-Montes como a Beira Doura, ou a Beira Duriense, mais uma vez dando um nó às palavras de duas regiões que se sentam à mesa como mais que família. 

E apesar de tudo, aceitando o inegável elo entre elas, quando se vê a cavidade do Douro no meio das serras, profunda, cercada por penedos que rasgam limites e bloqueiam acessos, e se percebe o obstáculo que noutros tempos deve ter sido ultrapassá-la, compreende-se porque foi vista, desde sempre, como uma fronteira, ora tribal, ora cultural, ora política. Ainda hoje, quando o povo fala do que está acima ou abaixo deste rio, nota-se por baixo do tom das frases um certo bairrismo. 

Não que, quando fazemos um caminho semelhante ao que fiz hoje e deixamos as beiras para entrar no que é oficialmente considerado o norte, se descubra uma mudança de roupa. Não há nada radicalmente oposto. Talvez a pronunciação das letras, o dito sotaque nortenho, seja o mais evidente, mas não é abrupto. A Beira-Alta já tem, em vários casos, vícios da pronúncia do norte. Mas nem que seja psicológico, quando se transpõe o rio de ouro, pensa-se que agora sim, é a sério, estou no norte.

 

Antes do Douro - Parque Natural do Douro Internacional

Socalcos - Parque Natural do Douro Internacional

 

E o norte interior tem o gráfico nome de Trás-os-Montes. O Tejo, como está mais que visto, dá-nos uma ideia de transposição, de ir para lá de um caudal, de ir além de um rio, além do Tejo, além-tejo. Trás-os-Montes joga-se da mesma maneira. Há uma ideia de excesso, de ultrapassagem, para depois dos montes, para detrás dos montes, para trás-dos-montes. As terras transmontanas têm uma consciência espiritual única. Por nascerem naturalmente recolhidas do resto do país, muitas vezes indiferentes a este, aqui se conservaram tradições que se as chamarmos de ancestrais poderemos incorrer no erro de lhes estar a dar modernidade a mais. Vou deixar esses pormenores para outro texto, talvez o de amanhã. Mas faço questão de sublinhar isto: Trás-os-Montes mantém-se o reservatório do Portugal dos mistérios, do Portugal que não se lê em manuais da escola, ou teses académicas, ou sequer em testemunhos da Torre do Tombo. Nisso, ele continua incomparável, imbatível, recordista absoluto há anos a fio. Se me perguntarem qual a antiga província portuguesa que mais gosto, nem tenho de pensar. A resposta tem fracções de segundo. É esta, a que piso neste momento. Trás-os-Montes não é para visitar. Ou se vem disposto a destapar-lhe pedras secretas ou o melhor é encontrar um destino internacional qualquer que não dê que pensar.

 

Rio Douro - Barca D'Alva

Igreja Matriz - Escalhão

 

Freixo de Espada à Cinta está atafulhado com tradições que nos trocam as voltas. 

A começar num freixo, que existe de verdade, junto à Igreja Matriz, prezado pelos freixienses, que conta lendas de vários séculos mas quase sempre com o mesmo fim: uma espada acaba à cinta da árvore, dando o nome à terra. 

A altura da Páscoa, que, tal como o Carnaval, se trata de um período que comemora o abandono da aspereza invernal, só depois cristianizada pela data da morte de Cristo, é aqui vivida de forma pagã. O Rebentar do Judas é bom exemplo, num ritual onde se pendura um boneco feito de palha num tronco, colocando explosivos no seu interior, deixando que rebente quando a procissão o passa. O Judas é, originalmente, a representação da estação da morte, do inverno, que aqui é destruído e feito em pedaços, simbolizando assim a chegada da primavera, o abrir da natureza. Em muitos outros sítios se faz alusão ao Judas como uma actualização de actos pagãos - por vezes são chamados Queima do Judas -, um acrescento da igreja que ao ver que não conseguia pôr fim a determinados rituais de cariz pagão resolveu adoptá-los como seus e enviar mensagens através deles. A este respeito, a vila organiza ainda o Enterro do Entrudo, umas semanas antes, mais ou menos com a mesma finalidade subjacente. Mas de entrudos falarei depois.

Ainda na Páscoa é celebrada a procissão dos Sete Passos. Faz-se nas sete Sextas que há entre o Casnaval e a Páscoa. Dizem que vem de tempos medievais mas vou discordar e dizer que vem bem mais de trás. É feita totalmente às escuras, ou apenas com a luz da lua, se ela existir, e a partir da meia-noite. Não é de estranhar o número sete, o da ligação entro o humano e o divino, muitas vezes tido como a perfeição.

E reafirmando a importância da Páscoa novamente, acontece aqui um curioso e solene cortejo religioso que vai da Igreja da Misericórdia à Igreja Matriz. O que é estranho é que entre o ponto de partida e o ponto de chegada contam-se pouco mais de uma centena de passos e, contudo, o caminho leva cerca de duas horas a ser feito.

Há mais para contar, mas não quero estragar surpresas. Trás-os-Montes, como disse, não é chegar e ir embora. Até porque se o escutarmos, e não falo de audição, jamais queremos sair daqui.

 

Convento de São Filipe Néri - Freixo de Espada à Cinta

Padaria - Freixo de Espada à Cinta

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por Ricardo Braz Frade às 17:32


8 comentários

De Anónimo a 09.11.2012 às 22:02

Continuo a gostar muito do teu relato desta aventura.

Não estás já cansado? O Dinis não deve ser propriamente confortável... quantas horas por dia é que conduzes?

Grande abraço


LL

De Helena a 09.11.2012 às 22:41

Tenho por Trás-os-Montes uma paixão assim, tal e qual como a descreve. Gosto, e podia dizer, nem sei porquê, se não conheço, simplesmente de tudo em Trás-os-Montes. E não conheço. Pena não poder dizer que já lá fui muito feliz.

Vá relatando, como de resto tem feito, com as suas bonitas palavras e fotos e desfrute dessa viajem plenamente. Bons passeios por terras de Miguel Torga, deixo-lhe a sugestão, não deixe de ir a São Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, terra onde nasceu o Homem, o Médico, o Poeta Adolfo Coelho da Rocha e visite a casa e a árvore dele.

Um abraço

De margarida a 10.11.2012 às 12:11

Texto rico de informações que oferece ao leitor vontade de conhecer a linda região transmontana .continue :-)

De margarida a 10.11.2012 às 12:17

Ah tb queria acrescentar que sou filha de transmontanos duma aldeia que dá por nome Nuzedo de baixo no concelho de vinhais .É nesta aldeia que passo férias ..vi

De Dylan a 11.11.2012 às 00:14

Em Freixo de Espada à Cinta, recomendo também as vistas dos espectaculares miradouros sobre o Douro. Absolutamente idílico!

De Ricardo Braz Frade a 11.11.2012 às 00:37

É impressionante que não há nada de errado em Trás-os-Montes. Vou tentar falar o melhor que posso dele, sabendo que não vai ser tudo o que quero dizer.

De Ricardo Braz Frade a 11.11.2012 às 00:39

Helena, tentarei ir à sugestão que me deu. Se conseguir, terei todo o gosto em falar dela.

De Ricardo Braz Frade a 11.11.2012 às 00:41

Margarida:
Andarei perto de Nuzedo daqui a uns dias.

LL:
Conduzo cerca de três, dependendo um pouco do número de paragens e desvios que faça. Estou cansado e pronto para me cansar mais.

Abraço.

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