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Qual crise?

Estas são conversas de um país que, estando em crise, vive apesar dela. Neste espaço fala-se de um Portugal que ainda consegue ser belo, de um GoCar feito playboy e de uma viagem que sempre quis fazer.


Quarta-feira, 05.12.12

Da Nazaré a casa - Parte II

 

Irrita-me aquele bairrismo muito português de se dizer à boca cheia, e sempre através de diminutivos, que o nosso vinhinho é do melhor do mundo, e o nosso queijinho é do melhor do mundo, e o nosso presuntinho é do melhor do mundo. Primeiro porque teria de conhecer todos os vinhinhos e queijinhos e presuntinhos do mundo para dizer tal coisa com algum sentido racional. Segundo porque já provei vinhinhos italianos, queijinhos franceses, e presuntinhos espanhóis, tão bons ou melhores que os nossos.

Quando tive a ideia desta viagem, não tinha qualquer objectivo de elevar o país a um dos melhores. É ignorante pensar dessa forma porque tenho bem mais de noventa por cento de um planeta por descobrir.

O que quis, sem ser chato na escrita, foi mergulhar num Portugal que não se vê à superfície, e garanto que qualquer pessoa que tiver coragem para ir lá abaixo, às suas profundezas mais ocultas, descobre tesouros que não fazem parte dos guias que se compram antes de partir para um sítio qualquer. Tenho um manifesto desprezo por quase todos os catálogos de igrejas, de cidades, e de castelos que andam por aí, porque não transmitem o que importa. Uma obra ou um ritual humano tem sempre uma justificação, um propósito, um sentimento. É isso o que mais me espicaça a curiosidade, caso contrário não passam de gestos ou edifícios, e estou-me mais ou menos nas tintas para o mês em que foram concluídos. O fascínio das pirâmides egípcias não está na pedra, mas na causa, o por quê. Nesse aspecto, Portugal ganhou por andar mais atrasado em relação a uma europa que se deixou afectar por um conceito de progresso, e guardou um folclore que é precioso, mágico, e por vezes incompreendido. Qualquer sinónimo de evolução dirá que não faz qualquer tipo de sentido ainda existirem manifestações como as dos Caretos de Podence em pleno século XXI. E aí respondo que quem está mal é toda esta conversa de termos de andar atrás do progresso como um galgo vai à cauda de um coelho. Não há nação que sobreviva sem identidade. Nem uma. Caso contrário passa de referência cultural ou etnográfica a mera referência geográfica. 

Nesse sentido, e aqui partilho outra meta que tinha quando peguei em pena e papel, quis mostrar a identidade portuguesa, que só é possível dividindo-a em muitas outras, porque este país não é, de todo, uno. O cantor Andrew Bird, quando cá aterrou, decidiu percorrer Portugal de norte a sul, e ficou altamente impressionado como num território tão pequeno pode habitar tamanha diversidade, numa dose que não se encontra em espaços bem maiores, como, por exemplo, em França. Isto é absolutamente verdade. Entendo perfeitamente que um alentejano tenha mais tema de conversa com um extremeño do outro lado da fronteira do que com um minhoto, como um minhoto terá maior proximidade com um galego do que com um transmontano, como um transmontano sentirá uma afinidade cultural com a província de leão que não partilha com um algarvio, como um algarvio deverá olhar para o norte de África e encontrar um reflexo de si próprio que dificilmente vê das suas serras para cima. Tudo isto é reconhecível a qualquer um dos sentidos. E Portugal só se assimila e se compreende integralmente se o virmos neste grande mosaico de cores. Se lá chegarmos, e o virmos bem de cima, aí sim, damos com uma inesquecível obra de arte, em que os monumentos e a paisagem valem nada quando comparados com o rito, a ideia, a alma, a saudade.

Por aí, e podem-me acusar do provincianismo que bem vos der na tola, digo-o sem ter de pontuar a coisa com reticências: Portugal é uma obra-prima.

Talvez um dia ele acabe. Porque os países acabam, como as estrelas e as pessoas. Mas uma lembrança só termina se não se merecer lembrá-la. E vão-se lembrar de Portugal. Não só porque ele mereça ser lembrado mas porque qualquer boa gente merece lembrar-se dele.

 

Obrigado Dinis, meu amigo.

 

Darei notícias em breve. É uma promessa.

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por Ricardo Braz Frade às 19:02

Terça-feira, 04.12.12

Da Nazaré a casa - Parte I

 

Não vou falar da etapa. Lisboa é-me demasiado familiar e não me importo de lhe faltar ao texto. Cheguei ao fim. Parti num dia 4 e cheguei noutro dia 4, dois meses depois. Hoje o caminho foi demasiado longo. Vou descansar. Amanhã escreverei o que quero: o epílogo. Depois disso, do remate final, tentarei compilar e paginar todos os textos e acrescentar-lhes mais uns que não viram luz. Pode ser que dê livro. Mas não vou prever nada disso enquanto não o terminar. Amanhã.

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por Ricardo Braz Frade às 21:56

Segunda-feira, 03.12.12

Da Terruja de Santo Estevão à Nazaré

Estátua da Padeira - Aljubarrota

Painéis de azulejos - Aljubarrota

 

Alcobaça e Aljubarrota. Uma viu nascer um mosteiro nos primórdios da fundação do território nacional, quando ainda nem se sabia muito bem onde terminava Portugal. Outra foi palco da batalha mais popular da história do país  - o facto de a termos ganho, e em inferioridade numérica, adicionado à importância que ela teve na independência, contribuiu para lhe aumentar a fama. 

Quem vem da Serra de Aire passa primeiro em Aljubarrota, e lá vê um conjunto de painéis de azulejos que ilustram a lenda, bem como a estátua, com formas meio cubistas, de Brites de Almeida, a Padeira, que se diz ter ajudado o exército português. Conta-se que era Algarvia e órfã, e que toda a gente tremia só de a ver, por ser feia e briguenta, chegando a ser procurada pela justiça, o que a fez emigrar para Castela. Aí foi maltratada e usada como escrava. Tornou, por isso, a Portugal, e viveu disfarçada de homem para que não a reconhecessem, até aceitar por fim, ao final de décadas, o trabalho de padeira em Aljubarrota. Foi de lá que ouviu os sons de guerra e, lembrando-se dos seus tempos de pancadaria juvenil, decidiu juntar-se às fileiras de Nun'Álvares Pereira. É quando volta para casa, já depois da vitória portuguesa, que ouve vozes a vir do forno e lá encontrou sete castelhanos escondidos. Pegou na pá e com ela matou todos os soldados foragidos. Actualmente ainda se comemora, em Aljubarrota, o Dia da Padeira, onde é levantada uma pá que se diz ser a verdadeira.

Uns poucos quilómetros adiante fica então Alcobaça e o seu mosteiro, pioneiro no estilo gótico em Portugal, talvez a primeira grande obra religiosa do país, pouco mais de trinta anos depois de ter sido fundada a Nação, onde os monges se instalaram desde os primeiros tempos, vivificando uma zona que era espaço de ninguém, até pelo eminente perigo das terras conquistadas pelos cristãos poderem ser recuperadas pelos sarracenos novamente. Se voltássemos nove séculos atrás perceberíamos o quão delicada era a posição do Mosteiro de Alcobaça, numa altura em que a raia sul do país ora ia abaixo, ora vinha acima, consoante os avanços e recuos dos exércitos cristão. Foi a tomada de Santarém que deu alguma margem para que ele pudesse ser construído sem interferências bélicas, e assim se foi aguentando, com as óbvias remodelações e requalificações e recuperações, até à presente data. Lá dentro, há um casal que tem de ser visitado: D. Pedro e D. Inês de Castro, que deram momentos que poderiam ser textos para um Romeu e Julieta lusitano. Os comoventes túmulos de um e outro estavam colocados lado a lado, o que, à primeira vista, teria mais sentido, porque assim imaginamos os dois amantes deitados. Mudaram-lhes a sala e colocaram-nos frente a frente, para que a primeira coisa que vejam quando voltarem à vida seja o seu amor. Os túmulos são de uma beleza ímpar, duas obras-primas sem igual. A simbologia está lá toda, e se se prestar longa atenção ao de D. Pedro lá acompanhamos a Roda da Vida e a Roda da Fortuna, com episódios da tragédia de Pedro e Inês. Não contempla, infelizmente, uma parte que não é considerada história, mas que é sem dúvida parte da estória que o povo guardou na memória: a coroação de Inês depois de morta, em que o rei obriga toda a nobreza a beijar a mão da sua mulher.

Não há maior metáfora sobre a ligação proibida e, ao mesmo tempo, flamejante, entre Portugal (D. Pedro) e a Galiza (D. Inês). Por muitas mortes que contem, eles vivem na sabedoria popular. Sempre.

 

Mosteiro de Alcobaça - Alcobaça

Taberna - Pederneira

Praia da Nazaré - Nazaré

 

E depois é não parar até se ver o mar. Ele aparece, ao longe, junto às grossas areias da Nazaré. Esqueça-se este canto nos meses de Julho e Agosto, que lhe tiram qualquer centímetro dos quilómetros de encanto que há para ver. É agora e é assim que devemos conhecer a Nazaré, no silêncio desolador do final de Outono, em que o Atlântico nos berra com ondas e nos atira maresia de sal. 

Aliás, para lhe pegarmos a história como deve ser, até devemos começar pela Pederneira, um bairro nazareno que está na sua origem, quando o oceano ocupava quase todo o espaço da zona baixa da vila. Lá viviam, antes, os homens do mar. Foi só depois que, com o recuo do mar, estas gentes começaram a descer e a fixarem-se mais abaixo, a que se juntou uma migração de pescadores de Ílhavo, vinda de perto de Aveiro. Daí, sim, podemos pisar-lhe a areia branca e ver a cadeia de sete ondas a formar-se lá para trás. À nossa direita, a acompanhar a vila e a praia e o mar, está esse paredão gigante, que separa a praia central da praia do norte, a tal onde foi surfada uma vaga impossível, que nem a natureza deve ter acreditado quando a fez. Subimos essa falésia a pé, se quisermos, ou no elevador, ícone da terra, usado por turistas e locais em doses iguais. Lá em cima, num sítio chamado Sítio, avançamos até ao fim do cabo, um cabo do mundo, uma finisterra, terminada com um farol amuralhado. E por fim, seguindo pelo lado direito do farol, descemos até à pedra do Guelhim, uma rocha que serve de guia para muito pescador que nela vê a altura das marés e a bravura do mar. Tomamos umas escadas perigosas, em ferro. Ficamos a uns poucos passos de uma morte certa se os pés nos falham. Mas vale o risco. Fincamos os pés na pedra e deixamo-nos banhar pela fúria de Neptuno a tentar conquistar a costa. É aqui, nesta palco irrealizável, que um tipo se apercebe do pequeno que é.

 

Santuário de Nossa Senhora da Nazaré - Nazaré

Elevador a subir ao sítio - Nazaré

Sítio do milagre - Nazaré

 

Não é de espantar que tenham feito da Nazaré um promontório sagrado, destino final de muitas romarias, os famosos círios, como são conhecidos na província da Estremadura. Aqui lhe espetaram a lenda de Dom Fuas Roupinho, que caçava nesta zona, e que certo dia, galopando atrás de um veado que não era mais que a encarnação do diabo, ficou a um metro de cair falésia abaixo, apenas travado milagrosamente pelo aparecimento da Virgem, neste caso, da Nossa Senhora da Nazaré. Lá estão a capela e o santuário, a quererem dar prova do milagre. Vou-me repetir mas trata-se, outra vez, de uma cristianização de mais um ponto extremo, de um fim de um mundo e de um começo de outro, tal como acontece em Sagres, ou no Cabo da Roca, ou no Cabo de São Vicente, ou no Cabo Espichel, ou em muitos outros que acompanham a nossa costa ocidental, qualquer um deles recheado de lendas com vocabulário cristão a tapar um conteúdo nitidamente pagão. 

Houve sempre uma necessidade humana em prestar culto à beleza. É esta a origem elementar de qualquer procissão, e procissões até finisterras são coisa que não falta ao país. De Viana do Castelo, na ponta norte ocidental, até Vila Real de Santo António, na ponta sul oriental, multiplicam-se os rituais que alimentam esta relação do homem com o mar que lhe alimenta os dias. Por muito que a religião mude, ou por muito que se sinta ameaçada, eles continuarão a existir, noutras formas e noutros termos. Estarão sempre cá para as curvas. Basta que haja homem. E basta que haja mar.

 

Mar bravo junto ao Guelhim - Nazaré 

Onda - Nazaré

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por Ricardo Braz Frade às 20:43

Domingo, 02.12.12

De Carnide à Terruja de Santo Estevão

À saída da vila - Carnide

Mosteiro da Batalha - Batalha

 

A Batalha roda à volta do mosteiro, que é pouco mais pequeno que ela. Li há relativamente pouco tempo, e infelizmente não tenho a certeza em que livro ao certo, que se poderia fazer uma espécie de trilogia dos mosteiros portugueses da zona centro: em Alcobaça, na Batalha, e nos Jerónimos, por esta ordem. O primeiro, onde andarei amanhã, se os planos não me falharem, estaria ligado ao nascimento da Nação. O terceiro, representaria a expansão, o Portugal do além-mar, das descobertas. Entre os dois estaria o Mosteiro da Batalha, o da consolidação nacional enquanto pátria, originalmente construído como uma consequência da batalha de Aljubarrota, mesmo aqui ao lado, à qual se associam bastantes lendas e outros tantos números, mas que a conclusão não é discutível: foi um dos marcos, talvez o mais significativo, que levou, ao contrário de outras províncias actualmente espanholas, este pequeno canto a ser independente das anexações castelhanas. A completar o monumento, para que não restasse qualquer dúvida, está lá o Condestável Nun'Álvares Pereira, a cavalo, gigante, a mandar na praça, homem que lutou e guiou os destinos vitoriosos de Aljubarrota. Outra razão que se pode apontar para o ter como símbolo de uma continuação dessa estranha ideia que foi Portugal, é o facto de ter sido construído ao longo de sete diferentes reinados, começando em D. João I e chegando a D. Manuel, que passou, a partir daí, a dedicar a sua atenção para um outro projecto situado na capital e que referi acima: os Jerónimos.

Um pouco a sul está a Pia do Urso, uma aldeia revitalizada e procurada pela miudagem pelo parque sensorial que exibe, com casas e produtos regionais, e mais adiante Porto de Mós, a pintar todo o quadro do que vem para a frente, o Parque Natural da Serra de Aire e Candeeiros. É bom lá chegar e conquistar o monte do castelo quadrangular do D. Fuas, com bonitas torres de telhados verdes, pouco habituais na arquitectura castelar portuguesa, e ter todas aquelas ondulações que eu tão bem conheço à nossa frente. D. Fuas Roupinho é uma figura emblemática do folclore nacional pelo milagre da Nazaré, ao qual me lanço amanhã.

 

Vista para o Parque Natural da Serra de Aire e Candeeiros - Porto de Mós

Castelo - Porto de Mós

Olveiras - Alvados

 

Vamos em frente. Voltamos à serra. Eu sei que daqui o que as pessoas guardam são as grutas, ainda por cima agora que uma delas virou sétima maravilha de Portugal, que é realmente enorme, e digna de ser vista. Mas vir apenas às Grutas de Mira d'Aire ou às de Santo António ou às de Alvados e não querer esforçar joelhos nos subires e desceres, é como ir a Lisboa, aterrar no castelo de São Jorge, e ir embora de seguida.

Mantêm-se bonitas Alcaria e Alvados, com casas típicas, construídas com a paciência da montagem da pedra sobre pedra, a aproveitar a inundação de rocha calcária que as envolve. São camas de descanso a alguns visitantes que procuram as elevações e as grutas de Aire e dos Candeeiros para percorrerem natureza serrana. Na primeira, Alcaria, existe um desvio para a direita, que pode parecer pouco perceptível a quem vá embalado em velocidade, e é muito bem feito que alguns não dêem com ele porque as coisas não se visitam com rapidez. Quem for atento, lê Fórnea na placa, e faz o que lhe compete, vira. Depois é continuar, à pata. Pode-se ver uma extensão de oliveiras que só termina porque os montes lhes param abruptamente a marcha. Há um pequeno riacho que nos vai fazendo companhia do nosso lado direito, e vai crescendo e crescendo, chegando a parecer um largo ribeiro conforme as chuvas, até terminar numa pequena cascata que cai de uma altura de três metros. E finalmente, após umas dezenas de passos em terra batida, vê-se a Fórnea, um enorme coliseu natural, uma magnífica bancada de calcário, a esntender-se em curva a cento e oitenta graus. Ali é para um tipo se sentar e deixar-se estar sentado, a ver a sombra a conquistar os metros à nossa frente à medida que o sol se vai pondo e escondendo no poente.

 

Entre serras - Alcaria

Cascata - Fórnea

Cá em baixo - Fórnea

 

Seguindo pelo Parque adentro surge depois, num dos cumes de maior altura, uma escarpa com dois grandes buracos lá cravados, que parecem olhos, e aos quais a imaginação do povo chamou de ventas do diabo. Esses negros olhos que a serra forma miram abaixo, no vale, a vila de Minde, a sul, e a de Mira d'Aire, a norte. O nome que dei ao título do texto de hoje é uma homenagem a esta bacia e a um pedaço cultural que ambas as vilas partilham: o calão minderico e as suas ligeiras derivações no mirense, ou, para o dizer com rigor, a piação dos charales do Ninhou. Não é uma língua, nem sequer um dialecto, mas conta com uma riqueza de vocábulos extensa e por isso quero elevá-lo a mais do que um calão. É um linguajar. Tem origem nas vendas de mantas que estas gentes faziam quando se deslocavam para sul, sobretudo para o Alentejo, tendo como objectivo a possibilidade de comunicarem entre si sem que os alentejanos os percebessem. Muitas destas palavras têm uma explicação. Como a Terruja de Santo Estevão, que segundo o dicionário do calão minderico, quer dizer Mira d'Aire: na vila há muitas pedras e baptizaram-na assim porque Santo Estevão foi morto à pedrada. Ou choradeiras, que é o mesmo que dizer cebolas, pelo efeito que causam quando são cortadas. Ou mamalhuda, que significa república, e acho que neste caso não é necessária uma justificação. E da combinação de determinadas palavras chegamos a outras, como arraiolos por cima da tosadeira, que somadas dão cabelo por cima da boca, ou antes, para ser breve, bigode.

Tenho uma detalhada memória dos meus avós falarem a piação para discutirem quanto dinheiro é que me iriam dar, e trocarem frases como, já jordaste neto ao charal?, ou seja, já deste dinheiro ao rapaz?. Certas pessoas mais velhas ainda vão buscar alguns destes termos quando querem conversar sobre alguma coisa que não deve ser percebida por mais ninguém. Prova disso é o meu Avô e a minha Avó, mas haverá mais com certeza. 

E agora, porque tenho cá família materna, vou-me aventurar. 

Em três planetas chego a Casal Grande e quero uma fusca com marinhas da mota. 

Até lá.

 

Ventas do diabo - Mira d'Aire

Vista da bacia, com Minde ao fundo - Mira d'Aire

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por Ricardo Braz Frade às 22:19

Sábado, 01.12.12

De Condeixa-a-Nova a Carnide

Igreja da Senhora do Cardal - Pombal

Busto do Marquês de Pombal (cruiosamente com um pombo em cima) - Pombal

Centro histórico - Pombal

 

Acabou Novembro e já ouço falar de se ir cortar o pinheiro para o enfeitar de luzes e cores, junto à porta ou à janela da sala. Lembro-me de em miúdo ir cortar o pinheiro à mata, com um carro e um serrote, e de sentir uma certa cedência ao comercial quando em casa dos meus avós se sofreu o desvio urbano de se comprar um simulacro da mesma árvore. 

A maioria não entende o ritual do enfeite de um pinheiro quando o mês de Dezembro começa a arrefecer a pele e o cheiro do natal se manifesta nas ruas. Percebe-se a incompreensão. A comemoração actual do 25 de Dezembro manda celebrar o nascimento de Cristo, o que em nada está relacionado com o acto de pendurar ornamentos em ramos de uma árvore que é trazida até casa. Faz mais sentido se contextualizarmos. A chamada árvore de natal remonta às festas do sol, e essa ligação está bem presente em toda a luz que a pontua, hoje com a ajuda da electricidade, e todos os objectos esféricos com que a tornamos mais nossa e diferente da de outros.

Esta mania recente de criticar o consumismo natalício tem uma base histórica católica, ou pelo menos cristã, mas já antes disso esta data era festejada, sendo que nesse tempo o destinatário era outro, o sol, ou o sol invictus, o invencível, porque apesar de andar a perder a força desde Junho, começava a recuperá-la nesta altura, no chamado solstício de inverno. Estes dias eram vividos com uma boa dose de festança e de opulência. Não passa de uma opinião pessoal, mas considero que quem vê no Dezembro actual um reprovável capitalismo a aproveitar-se de uma data sagrada, engana-se, porque desde sempre se comemorou a pujança solar com magnificência. Não é de agora. Os romanos, muito antes de sabermos sequer o que era consumo desenfreado e muito antes de Jesus ter pisado a Terra, faziam-no.

 

Largo do Marquês de Pombal - Pombal

Heranças árabes - Pombal

 

Foram um aparte que quis fazer, os três parágrafos de cima. Passei hoje por Pombal, onde o Marquês com o mesmo nome dormiu uns bons aninhos, para depois seguir caminho para uma freguesia do concelho, Carnide. Tenho cá amigos, e neste caso faz sentido chamá-los ao texto porque parte deles emprestaram-me o Dinis. 

Falando de Pombal, é preciso dizer que começam mais ou menos por aqui, na Alta-Estremadura e no tido como Oeste português, os terrenos da Ordem Templária, tornando-se, mais abaixo, Tomar o exemplo máximo disso. São terras de Dinis. E não só. São terras da sua mulher, D. Isabel, a rainha santa, que é causa e consequência de muitos dos nomes atribuídos a algumas povoações aqui perto. Não é por acaso. Há uma relação muitíssimo próxima entre aquilo que eram os Templários e o reinado de D. Dinis, que os safou de morte certa quando, para os encobrir de devaneios papais, lhes mudou o nome para Ordem de Cristo. Lanço, portanto, o desafio: vejam-se a quantidade de lendas, terras, pinhais, castelos templários ou rituais anuais a associados a essa Ordem - a Festa das Cruzes, em Cem Soldos, onde se partem cruzes no final de uma romaria -, que se encontram num espaço de dimensões modestas como é esta parte nortenha da antiga península estremenha somada a certa parte setentrional do Ribatejo. É nestes quadrantes geográficos que conseguimos encontrar um folclore, ou seja, uma cultura unificadora, que mete centenas de aldeias do Centro a marcharem ao mesmo passo.

 

Castelo (à esquerda) e antiga muralha (à direita) - Pombal

Pequena capela decorada - Ranha de São João

Igreja de Carnide - Carnide

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por Ricardo Braz Frade às 19:28

Sexta-feira, 30.11.12

De Coimbra a Condeixa-a-Nova

Aqueduto em Conímbriga - Condeixa-a-Velha 

 

São várias as ribeiras que invadem a vila, que nem veias num antebraço, deixando ao homem que a quisesse habitar uma necessidade óbvia de lhe adaptar uma arquitectura popular que conseguisse conviver com isso. As casas de Condeixa-a-Nova, não raras vezes, constroem-se em cima da água, o elemento que menos escasseia aqui no burgo. Nas suas paredes vêem-se as marcas pretas deixadas pelas alturas em que os riachos chegam mais alto. Há portas cunhadas nas fachadas que parecem absurdas no objectivo, por darem para lado nenhum. 

Muitos foram os que aproveitaram os fluxos fluviais para se transformarem em moleiros e conduzirem cadeias de água através de moinhos subterrâneos, vulgarmente chamados de azenhas, para reduzir ao ínfimo o trigo e o milho. É, por isso, mais que explicável a devoção de Condeixa-a-Nova pela sua padroeira, Santa Cristina, que segundo se diz foi morta no mar com uma mó de moinho atada ao seu corpo, a pesá-la para o fundo - podemos aliás encontrar mais resquícios desta devoção em nomes de localidades em torno da cidade de Coimbra, sendo a Póvoa de Santa Cristina a mais representativa disso.

 

Fórum romano parcialmente reconstruído - Condeixa-a-Velha

Maquete do Fórum e Templo romanos - Condeixa-a-Velha

 

Conímbriga vale a pena. É cara mas percebemos que damos o dinheiro para a tratarem bem. Tenho sempre o pé atrás com achados arqueológicos. Sem querer parecer básico, mas sendo-o, a verdade é que por vezes aquilo a que chamam de ruínas não passam de escavações a exibir chatice. Principalmente porque ninguém se dá ao trabalho de explicar o que as pedras que vemos têm para dizer. Em Conímbriga dão-nos uma aulas de cultura romana. Percebemos o que era uma cidade ordenada por Roma, imposta como matriz civilizadora de tribos indígenas que já cá viviam antes. As reconstituições estão bem feitas, com detalhe, sobretudo os mosaicos que se criavam para os pavimentos e que inspiraram uma das grandes obras humanas da cultura portuguesa - a calçada. É verdade que a influência da calçada portuguesa tem boa percentagem de árabe, sobretudo na parte ornamental, mas a sua génese é esta, a do encaixe de pedras romano, e só não vê isso quem não quer.

É a velha treta de não se conseguir apreciar o que é nosso. Nem é bem isso. É mais o facto de, por ser nosso, desligamos-lhe a atenção, como qualquer miúdo faz com um brinquedo que lhe nasce nas mãos. Uma das coisas que me faz andar por Lisboa, e ando mesmo muito, até vários quilómetros por dia, é todo aquele livro que desfolhamos por baixo de cada pé. Olhamos para a frente à procura de um brilhante que chame a atenção e nem sequer nos apercebemos do ouro que pisamos no passeio.

 

Pavimento em mosaico romano - Condeixa-a-Velha

Pavimento romano, muito similar à nossa calçada - Condeixa-a-Velha

 

É muito interessante ver como a cidade romana do primeiro século não é de todo diferente da actual. Existia um planeamento urbano classista, que bem se vê nas casas aristocráticas, maiores, com dez vezes mais divisões do que moradores, Existia um comércio de primeira, que se posicionava nas artérias principais da cidade, e lojas de segunda, que se amanhavam num buraco qualquer. Extiam praças centrais, os fóruns, de onde partiam e terminavam todas as ruas. Existia o templo, primeiro dedicado a divindades romanas, depois a cristo, mas sempre no coração da civilização, para que ninguém o esquecesse. O esqueleto citadino desenhado pelos romanos virou papel químico para qualquer outra organização urbana posterior. É assim que saio de Conímbriga, com a certeza de que, ao olhar para ela, só a vejo antiga por uma questão estética e tecnológica. Porque tem pedra e não cimento. De resto, é tão actual como o último i-phone e mais os que ainda estão para vir. 

 

Moradias sobre a ribeira - Condeixa-a-Nova

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por Ricardo Braz Frade às 21:29

Quinta-feira, 29.11.12

Da Lousã a Coimbra

Castelo e Santuário à Nossa Senhora da Piedade - Lousã

Entrada no Santuário da Nossa Senhora da Piedade - Lousã

 

Há muito castelo no país, e sobretudo se o registo for o de conhecer um sítio por dia, eles passam para nuvens na paisagem, como um eucalipto ou um carvalho ou uma oliveira. No alentejo, na linha fronteiriça, isto é ainda mais verdade. Cada vilarejo, por mais pequeno e perdido que esteja, leva uma fortificação num morro lá próximo, como lojas de fast food nas urbes americanas. Mas onde dormir, na Lousã, o castelo ganha outra propriedade. Mais que isso. Ganha todo e qualquer esforço que se faça para o ir ver. Está tapado pela parte moderna e antiga da vila, e enfia-se mesmo à entrada da serra, numa de proteger a irmã mais velha, Coimbra, de antigos ataques sarracenos que foram a constante do século XII. Logo ali ao lado, na outra margem da ribeira de São João, a findar um monte de menor altitude, mora o Santuário de Nossa Senhora da Piedade, que certifica aquele enclave com tudo o que se pode entender como religioso, e olhem que não falo só do significado que a igreja lhe dá. É marcado por um arco, em xisto, e um aviso picado na pedra do lado esquerdo: daqui para além, irá pisar lugar sagrado. Além, entenda-se, é para lá do arco, que parece aqui marcar uma passagem de dimensão. A praia fluvial que foi montada junto ao rio deve ter iniciado uma série de passeios em fato de banho pelo santuário acima porque na mesma pedra, mais abaixo, podemos ler seja regrado no vestir; no falar; no gesticular; no comer e no beber. Não há grande dúvida que se quer fazer do grupo de capelas que ali se juntam um pequeno jardim solene. E bem. Está ali uma boa parte dos segredos do país. Vive aqui, neste castelo, e desde sempre, o desgosto da Princesa Peralta.

 

A Fonte da Vida - Lousã

Ribeira de São João - Lousã

 

Mais uma vez se comprova que qualquer sítio do país que tenha um culto associado, hoje cristão, antigamente pagão, e sempre acompanhado de lendas e mitos, criados e recriados pela sabedoria de um povo que nasceu com ele nos pés, é bonito. É bonito nem que seja pela contemplação, à falta da estética. O castelo e santuário que põem Lousã, as suas aldeias, e a sua serra, como obrigatórias, estão cobertos de lendas misteriosas que vêm ao de cima quando os olhamos, juntos, em par, mesmo sem lhes saber uma linha do folclore que lhes está por trás. Se olharmos com olhos de fábula para este quadro bucólico, percebemos por que razão ainda o povo acredita na magia das coisas e no que está para lá da matéria. Diz-se que se ouve, de quando em vez, o chorar da Princesa Peralta, em luto pela morte do seu amado Lausus - Lausus, que viria a originar Lousã -, e que no castelo ainda se escondem os seus tesouros. Acho, mais uma vez, que a lenda mais não é mais do que uma frequente readaptação de antigas crenças, anteriores ao cristianismo, e que já lembrei noutros textos: as das mouras encantadas. Estes cultos são periodicamente actualizados conforte a realidade que a história vai oferecendo aos séculos. Seja a guerra entre cristãos e mouros, entre portugueses e espanhóis, entre ibéricos e franceses, as moiras encantadas são um caso de estudo em Portugal, e uma constante nos nossos livros de contos. Podem estar disfarçadas de milhentas formas, mas se lhes tirarmos a roupa toda e deixarmos apenas osso, encontramo-las, sempre numa presença divina, de fada, tão belas que enfeitiçam, com boas doses de bondade e vingança, prontas a usar qualquer uma delas conforme a abordagem de quem tenha a dúbia felicidade de as ver.

 

Paços da Universidade - Coimbra

Escadas de Minerva - Coimbra

 

É difícil ter Coimbra à frente e pô-la em papel. Não só por tudo o que há para dizer, que dava uma colecção de três volumes com envergadura bíblica, mas porque Coimbra não se deixa conhecer assim. Seria preciso namorar com uma estudante da área de humanidades, e acompanhá-la diariamente na subida à Faculdade de Letras, na Alta da cidade, para perceber como é ser jovem por cá. Seria preciso beber shots sem fim, a esquecer a ressaca da manhã, e a do amanhã, e a do depois de amanhã, e deixar que o álcool me tirasse forças, e sentir essa irresponsabilidade estudantil que Coimbra, mais que qualquer outra, ensina, como se fosse cadeira obrigatória. Seria preciso vestir-me de preto e roçar-me no meio de capas negras e cantos de praxe, para entender todo este ritual até ao último ponto da última página. Seria preciso ver que a espinha afinal sempre pode arrepiar quando a ópera do Fado de Coimbra se faz tocar em serenatas dedicadas à meta máxima de qualquer homem: a mulher. Seria preciso perceber o que são estes cantos, estas torres, estes arcos e estes nomes, que me causam dúvida e estranheza, como a misteriosa Via Latina, ou as escadas dedicadas a Minerva, por onde qualquer pessoa sobe e desce sem se aperceber disso. Seria preciso mais do que ouvir os três sinos da torre universitária, o da cabra, o cabrão, e o balão, cada um com o seu significado, cada um com o seu sentimento, e teria de sentir o toque da cabra a alterar-me os trejeitos ao mandar-me para as aulas, para o almoço, ou para casa. Seria preciso fazer piscinas entre a Baixa e a Alta, a primeira em que estudantes são doutores, a segunda em que mandam comerciantes, e perceber como duas zonas de uma só cidade podem ser tão desiguais que justificariam declarações de independência de qualquer uma das partes. Seria preciso cá comer, cá guiar, cá dormir e cá acordar.

Seria preciso cá viver.

Como sempre quis fazer.

 

Arco de Almedina - Coimbra

Porta Férrea - Coimbra

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por Ricardo Braz Frade às 20:03

Quarta-feira, 28.11.12

De Arganil à Lousã

Dinis nas aldeias do xisto - Comareira

Fonte dos namorados (à esquerda) - Aigra Nova

 

Eu acho que eles não sabem. Os de cá, destas aldeias artesãs, cozidas em xisto, não percebem o fascínio que me dão quando divago pelas serras onde se deixaram afogar. Este novo conceito do Roteiro das Aldeias do Xisto, que desbrava caminhos pedestres, muito provavelmente os mesmos que outrora alguns pastores usaram nas transumâncias e outros moleiros trilharam para fazerem suar moinhos, veio destapar gente que andava escondida nas paredes montanhosas do Trevim e da Lousã, e que, não desfazendo, têm mais para me contar que um bairro inteiro de Lisboa.

No concelho de Góis podemos conhecer quatro destas aldeias de seguida. Um bom imprevisto fez com que apenas tenha parado em três: Comareira, Aigra Nova e Aigra Velha. Faltou-me a Pena, acedida por uma estrada empedrada.

A primeira aparece quase nem se dar por ela. É a Comareira, a seguir a uma curva de cotovelo que guarda uma casa que parece um brinquedo de exposição e um riacho.

Mais acima, vem Aigra Nova, a pedir um descanso numa tábua de pedra. Tenho uma máscara de entrudo que é original daqui. Antes, nas aldeias de Góis, aproveitavam-se as árvores e os seus cascos para camuflar a cara, e improvisavam-se uns trapos para cobrir o corpo. Não só por uma questão de fundo de maneio, obviamente muito mais em conta do que comprar uma fantasia qualquer numa loja de esquina, mas sobretudo porque ligava esta fase do ano àquilo que importava, a natureza. Era depois feito um circuito entre as várias povoações sendo que a regra era sempre a mesma: não haveria ética nem moral a pesar na consciência de ninguém e tudo era mais que válido. É com base nestas tradições que vejo com amargura a nossa aproximação ao carnaval brasileiro, sobretudo em zonas mais urbanas, em que as pessoas não fazem ideia do quão perto do ridículo estão quando expõem pernas e umbigo, ao léu, a meio do Inverno.

 

Máscaras do carnaval de Góis - Aigra Nova

Até Aigra Velha - Roteiro das Aldeias do Xisto

 

Foi em Aigra Velha, depois de umas curvas que vão subindo no sentido do Trevim, que passa em muito os mil e duzentos metros de altitude, que encontrei o inesperado. Aigra Velha está meio abandonada e não me pareceu que, mesmo noutros tempos, tenha tido muito mais movimento do que aquele que hoje mal se vê. Escreve-se num placar à entrada da vila que as casas tinham ligações interiores entre si e que havia apenas uma rua na aldeia. Esta era fechada ao exterior porque, vou citar, por aqui andaram lobos. Digo eu que essa disposição foi a forma que arranjaram de proteger o gado da boca desses carnívoros que agora só se conseguem achar mais a norte. Esta relação vingativa entre pastor e lobo ibérico é bem observável a norte do Douro, onde assisti a grupos de pessoas queixarem-se das ovelhas e carneiros que já tinham sido abocanhados por ataques furtivos de lobos. Mas continuando que o Douro já lá vai. Tentava procurar o início e fim da tal ruela única de Aigra Velha e avistei um senhor de cabelo branco, com a pêra mais saliente que o resto da barba, camisa axadrezada, mangas arregaçadas, a transportar lenha e erva num carrinho de mão, daqueles com roda destacada na frente. Vive ali sozinho com a mulher mas ela estava fora. Têm a aldeia inteira para eles.

- Faço hoje um mês desde a última vez que saí daqui para ir à Lousã - disse-me ele.

Queria conversa, claro. Ouvi-o antes a falar com a cadela, a Patusca, e a pedir às galinhas que saíssem da frente. Nessa altura, ainda não se tinha apercebido de mim. Foi quando me viu a pisar uma pequena descida com rede de arame à esquerda e à direita, a separar terrenos aráveis de terra batida, que o vi sorrir. Gente, deve ter ele pensado no aceno que me deu. 

Fiquei umas boas duas horas à conversa. Chegar a Pena tornou-se impossível. Que se lixe. Valeu a pena.

 

Eu e o Dinis - Roteiro das Aldeias do Xisto

Rua dos Carvalhos - Aigra Nova

 

- Então mas sempre viveu cá?

- O meu cunhado sim. Entretanto ele morreu. E vim para cá com a minha mulher. Tinha umas terras ali para a Lousã, mas regar aquilo ficava muito caro. Há lá batatas que nunca viram água. Aqui é de borla ou quase. Tenho a horte e trouxe o gado todo para cá.

Mostrou-me a casa, parcialmente reconstruída.

- Está a ver ali, aquele tejadilho novo?

- Estou, estou.

- É aí. Vivemos na sala porque o quarto ainda não está em condições. Recuperámos a sala e a cozinha.

Era, das casas centrais, a única que parecia habitável. 

Conversámos como se faz em mesas de café a jogar à moeda. Eu sobre a viagem, ele sobre o que era viver ali.

- A minha mulher foi a Góis e pedi-lhe para comprar lâminas de barbear. Trouxe-me cinco daquelas descartáveis que não dão para nada. Os pelos enfiam-se ali no meio… Usei duas para o lado esquerdo e duas para o lado direito. Percebi que já não dava para o resto e deixei a pêra.

Depois contou-me uma pequena história de uma pessoa que conhecia de Gouveia, quando lhe falei que o meu lado paterno era de lá.

- Não sei se o senhor conhece. Era um gajo que se ia matando num acidente de carro. Devia estar numa mudança alta, e não o conseguiu agarrar numa curva. Espetou-se numa árvore. Safou-se dessa. Uns dias depois estava no cimo de um poste de electricidade, deve ter trocado lá uns fios, apanhou um choque e morreu. 

Começou-se a rir e eu fui com ele. É saudável um tipo rir-se de coisas sérias.

- Isto quando um gajo tem de morrer, não há volta a dar.

Durou muito mais tempo. Até quase ver que o céu estava a mudar de cor. E só aí lhe perguntei o nome.

- Coriolano.

- Ricardo - respondi eu a esticar a mão -, e da próxima vez que cá vier falamos novamente.

- Sim, não há como não dar comigo.

 

A Lousã veio tarde. Amanhã dou-lhe uma achega.

 

Com o Senhor Anselmo - Aigra Velha

Senhor Anselmo a falar da aldeia - Aigra Velha

Praça Cândido dos Reis - Lousã

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por Ricardo Braz Frade às 21:06

Terça-feira, 27.11.12

De Santa Comba Dão a Arganil

Casa de Salazar - Vimieiro

Rio Mondego - Tábua

 

Acabei por ir parar ao Vimieiro porque o caminho até Arganil tinha de passar por ali. No Vimieiro, se não sairmos da estrada principal, damos com a casa onde Salazar nasceu. Para quem vem de Santa Comba Dão fica do lado direito, antes de chegar à Escola Salazar. A casa está apodrecida, a milímetros de ruir. É suportada por três ferros cilíndricos que, com apoio no chão, lhe seguram parte do tecto. Há uma placa por baixo das telhas que informa ter sido ali que ele veio ao mundo. Pelo teor das palavras dedicadas, suponho que lá tenha sido colocada por admiradores e não detractores. 

Daqui para a frente notamos que o granito esmorece. Passamos à segunda fase da Beira, em que a pedra deixa de ser um bloco bruto e acinzentado para passar a uma elegante tábua lapidada e da cor da terra molhada.

É o xisto, e mais as gentes que se usam dele. 

Deram-lhes uma geografia oficial.

São as aldeias do xisto.

 

Pinhal ardido - Coja

Fonte das Moscas - Benfeita

 

Vêem-se muitas, sobretudo junto a Góis, Miranda do Corvo e Lousã. 

A rondar Arganil, poderia visitar a história do Piodão, a famosa terra que é uma cascata de casarios a discorrer vale abaixo, as da base iguais às do topo, apenas cortadas pela brancura reflectora da igreja. Tão bela e sensível que a baptizaram de aldeia presépio. 

Tinha também, aqui bem perto, a aldeia de Fajão, que se a visse me desatava um nó de saudade, e que escreveu tão bem humoradas conversas no excelente livro que é o "Os Contos de Fajão" compilados pelo Padre Nunes Pereira, a que várias vezes do ano recorro para me lembrar de como as coisas simples me fazem rir. 

Mas fui antes a Benfeita, porque para as outras duas já há recomendações suficientes. Benfeita fica enroscada na Serra do Açor. É dividida por um barulho que parece de gelo a rebolar no rio, vindo da ribeira da mata, primeiro, e da sua junção com a do Carcavão, depois. Apesar de estar no catálogo do roteiro do xisto, é talvez aquela em que menos lhe assenta o nome: as casas são, na sua vastíssima maioria, de fachada branca. Se atravessarmos as pontes até ao outro lado da aldeia, o menos povoado, e chegarmos à Fonte das Moscas, damos com a terra esticadinha ao máximo diante de nós, e em toda a sua largura é preciso procurar para lhe descobrir uma pitada que seja dessa pedra que tantas vezes é tida como bandeira de certa parte da Beira. Mas depois, num amontoado mais concentrado de moradias, avistamos a torre. Essa sim, xistosa dos pés à cabeça, e com uma interessante melodia de sinos que responde ao título do livro do Hemingway.

Quando a torre foi construída passava-se o ano de 1945 que, para qualquer concurso de memória é visto como o do fim da segunda grande guerra. Na altura, deram-lhe o nome de Torre do Salazar, embora na aldeia fosse conhecida como a de Santa Rita, por estar ao lado de uma capela que lhe presta culto. No dia 7 de Maio desse mesmo ano, dobraram-se os sinos pela primeira vez, em comemoração ao final do conflito que pôs quase metade do mundo contra quase outra metade. Aquilo pegou, e a partir daí criou-se o hábito de, nessa precisa data, se ouvirem 1620 badaladas, uma por cada dia que a Europa esteve em guerra. Depois do 25 de Abril e da reformulação de nomes que remetessem para o passado salazarista, alterou-se o seu nome para outro, muito em conta com as canções anuais que canta: a Torre da Paz. 

 

Capela de Santa Rita e Torre da Paz - Benfeita

Até Arganil - Coja

 

E finalmente, pelo mesmo caminho, vim até Arganil. O comandante informou-me que os bombeiros apenas contavam uma camarata, e que pelos vistos, na presente noite, estaria ocupada apenas por mulheres. Ainda lhe disse que estou há dois meses sem mulher e que não seria por aí, que quem se aguenta dois meses faz o sacrifício de se aguentar mais uns dias. Continuei que não contava vestir-me e despir-me à frente delas só para as atiçar mas ele deve ter notado a mentira na minha voz e confirmou que eu ficaria muito melhor fora dali. Mas foi cordato e recomendou-me outro sítio. 

Que bem me recebeu a Santa Casa da Misericórdia. Por trás do lar de idosos está guardado um bungalow que tem pele e ossos em madeira, novinho em folha, onde hoje fico a dormir. Fica no início da Mata do Hospital. A mata é o que mais há para ver. Fizeram dela uma aldeia. No meio dos carvalhos há poemas populares escritos na pedra, nomes de ruas cravados em troncos, quase avenidas com túneis de arbustos, mesas e assentos para jantares e festins de dezenas, árvores dedicadas a cada uma das Casas da Misericórdia, parques para putos desenfreados atirarem a inquietação e miradouros com bancos suficientemente pequenos para só lá caberem pares de namorados.

Não tinha qualquer dúvida antes, nem sequer fiz a viagem para o comprovar. Que Portugal tem muito mais boa gente que má, é afirmação fácil e mais que comprovada. O que não sabia, e fiquei a saber, é que se pudéssemos vender para fora uns pacotes de bondade, pelo menos aquela que temos a mais, por esta altura o superavit já teria dado cabo da dívida até ao último tusto. 

 

Bungalow na Mata do Hospital - Arganil

Banquete - Mata do Hospital

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por Ricardo Braz Frade às 22:36

Segunda-feira, 26.11.12

De Viseu a Santa Comba Dão

Praia fluvial - Caldas de Sangemil

Com o Dinis - Entre Dão e Mondego

 

Estamos entre Dão e Mondego, tão próximos que facilmente os confundimos. Passeei-me pelo primeiro, outro dos rios portugueses a emprestar o nome a uma região de vinhos, provavelmente a terceira que nos lembramos depois do Douro e do Alentejo. Vêem-se vinhas a esse propósito, a combinar padrões com esta forma de granito a que as bocas populares vulgarizaram no nome de dente de cavalo

É engraçado ver que, nestas cercanias, se nos desviarmos das auto-estradas de Viseu e corrermos a nacional para sul, damos com uma pequena coluna da história de Portugal numa recta de cerca de vinte quilómetros. Começa depois de Sangemil e Beijós, quando vemos Cabanas de Viriato a aparecer. Aqui nasceu Aristides de Sousa Mendes, futuro cônsul. Termina um pouco adiante, quando chegamos a Santa Comba Dão. Aqui, ou muito perto - em Vimieiro -, cresceu António de Oliveira Salazar, futuro Presidente do Conselho. Tinham quatro anos de diferença e nos finais do século XIX seria impossível imaginar que um dia se iriam encontrar e construir um episódio dramático em plena segunda guerra, que actualmente deu ideias para um filme agora em exibição. Não vou contar o que se passou porque já deverão saber. E se não souberem sempre podem ir ao cinema e gozar do factor surpresa.

Santa Comba Dão, presentemente, é mais conhecida por ter acompanhado a vida de Salazar do que propriamente pelo seu outro passado, que falava de uma terra apoiada numa paisagem à beira-rio, e que lhe deu a alcunha de Princesa do Dão. É pena, mas percebe-se - é impossível dar à luz um senhor que governa o país durante trinta e cinco anos a fio e não se ficar conhecida no mapa por isso. A verdade é que Santa Comba Dão está um brinco. Não lhe vi uma parede vandalizada, nem um papel no chão. A zona da ribeira das hortas é uma sala de tranquilidade, onde algumas mulheres iam, e mais raramente ainda vão, aproveitar as suas águas para a rega das hortas e a lavagem da roupa. Atravessamo-la por uma pequena ponte de origem medieval ou romana, ou outra feita em madeira, a terminar um passadiço quieto, decorado com bancos e canteiros. Muitas cidades portuguesas são mais bonitas que Santa Comba, mas estão mais feias que ela.

E já que comecei o texto por falar de Cabanas de Viriato e de Santa Comba, falarei de uma e de outra de seguida. Da primeira, do curioso ritual da dança dos cus. Da segunda, da trágica lenda que lhe deu nome.

 

Estátua de Viriato - Cabanas de Viriato

Centro histórico - Santa Comba Dão

 

A dança dos cus faz-se no carnaval de Cabanas de Viriato e envelheceu para bem mais de cem anos. A coreografia em si não tem grande saber: há duas filas, supostamente uma de rapazes e outra de raparigas, em que cada elemento de uma vai chocando o seu cu no elemento da outra sempre que a filarmónica muda o ritmo da valsa. Disse supostamente porque esta forma não é exactamente cumprida, já que é frequente ver-se um embate de cus apenas masculinos ou apenas femininos. A máscara usada não obedece a qualquer tipo de norma, isto é, cada pessoa tem autonomia para se vestir como bem entender. 

Não se pode dizer que haja aqui um código simbólico complexo, como acontece em Podence, por exemplo - muito embora o choque de cintura entre cus lembre os dos chocalheiros nas mulheres de Trás-os-Montes. Mas podemos fazer um paralelismo baseado naquilo que já escrevi: que o carnaval celebra a alvorada da natureza e entende-se que, nesta altura de tempo sem lei, a diabrura não é condenável. Nesse aspecto, uma atitude desta índole, que normalmente seria apelidada de grosseira, é tida como praticamente necessária. 

Quando há descanso da dança, vão às entrudadas, este sim um fenómeno transversal a todo o país, em que vários aldeões são visados com quadras e declamações de mal dizer. E o lesado tem de ouvir e calar, enquanto exibe o corar nas risadas dos restantes.

 

Casas típicas - Santa Comba Dão

Abrigo de patos na Ribeira das Hortas - Santa Comba Dão

 

Já em Santa Comba, na Avenida General Humberto Delgado - interessante escolha de nome, na antiga cidade de Salazar -, há mais um painel de azulejos que ilustra a lenda da cidade. Escorre tragédia por todo o lado. Assume até proporções de fita de terror gore

Diz-se que aqui existiu um convento onde viviam cinco dezenas de freiras, junto às margens do rio Om. Na altura em que os mouros vinham em frenética cadência conquistadora pela península acima, lá se soube da conquista de Coimbra, acontecimento que pôs as freiras a rezar de medo. Quando um dos sarracenos chegou finalmente à porta do convento, a madre Comba serenou ânimos e foi abrir a porta ao invasor. Alimentou uma longa conversa com ele e este confessou-lhe que os soldados que conquistaram aquelas terras tinham ordens do seu rei para ficarem com as freiras para si. A madre disse que preferia que eles as matassem a todas do que serem obrigadas a virar costas à sua fé. O árabe respondeu que não iria matar uma mulher que estava destinada a servi-lo e abandonou aquelas paragens para mais tarde voltar. Quando regressaram, os sarracenos prepararam-se para fazer as suas escolhas e ficaram surpreendidos com a beleza das freiras. Quando o primeiro soldado exprimiu a sua preferência de todo o leque que dispunha, Comba chamou a jovem freira que, após um beijo de despedida da sua madre, sacou de um punhal e cravou-o no coração. As restantes monjas fizeram o mesmo e caíram mortas no chão. Comba também. Os ecos do martírio duraram centenas de anos na memória deste povo, que baptizou a povoação com o nome de Santa Comba D'Om, mais tarde Santa Comba Dão. 

Existe, no Alentejo, uma Santa igualmente conhecida por Comba, com uma história de mártir semelhante, e onde se conta ter rebentado uma fonte de água pura do sítio onde o sofrimento se deu.

 

Igreja Matriz - Santa Comba Dão

A lenda de Santa Comba na Avenida Humberto Delgado - Santa Comba Dão

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por Ricardo Braz Frade às 18:23


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